ESPECIAL

Universidade de Brasília homenageia os cem anos do antropólogo e traz registros de sua trajetória na educação, na política, na literatura e na ciência 

Fundador da UnB nasceu em 26 de outubro de 1922, em Montes Claros (MG). Arte: Francisco George Lopes/Secom UnB


Antropólogo, educador, pesquisador, escritor, político. Um mesmo Darcy Ribeiro, mas que se revela por suas múltiplas faces. A UnB celebra os cem anos de nascimento do seu fundador, que seriam completados nesta quarta-feira (26), com recortes dessa trajetória plural e realizadora. 

DARCY POR DARCY – “Às vezes me comparo com às cobras, não por serpentário ou venenoso, mas tão só porque eu e elas mudamos de pele de vez em quando. Usei muitas peles nessa minha vida já longa, e é delas que vou falar. A primeira de minhas peles que vale a pena ser recordada é a do filho da professora primária, Mestra Fininha, de uma cidadezinha do centro do Brasil.”

“Outra saudosa pele minha foi a de etnólogo indigenista. Vestido nela, vivi dez anos nas aldeias indígenas do Pantanal e da Amazônia. Pele que encarnei e encarno ainda, com orgulho, é a de educador, função que exerço há quatro décadas. Essa, de fato, foi minha ocupação principal desde que deixei etnologia de campo. Acabei ministro de Educação de meu país e fundador e primeiro reitor da Universidade de Brasília.”

“Outra pele que ostentei e ostento ainda é a de político. Sempre fui, em toda a minha vida adulta, um cidadão ciente de mim mesmo como um ser dotado de direitos e investido de deveres. Com a pele de político militante fui duas vezes ministro de Estado, mas me ocupei fundamentalmente foi na luta por reformas sociais.”

“Fracassando nessa luta pelas reformas, me vi exilado por muitos anos e vivi em diversos países. Minha pele de proscrito foi mais leve do que poderia supor. Meu ofício naqueles anos foi de professor de antropologia e, principalmente, reformador de universidades. Disto vivi. No exílio, devolvido a mim, me fiz romancista, cumprindo uma vocação precoce que me vem da juventude. De volta do exílio, retomei minhas peles todas.”

>> Leia a íntegra da biografia do ex-reitor da UnB, publicada no site da Fundação Darcy Ribeiro

 


ETNÓLOGO EM CAMPO –
“Berta, abro este diário com seu nome. Dia a dia escreverei o que me suceder, sentindo que falo com você. Ponha sua mão na minha mão e venha comigo. Vamos percorrer mil quilômetros de picadas pela floresta, visitando as aldeias índias que nos esperam, para conviver com eles, vê-los viver, aprender com eles.” Com esse recado à sua então esposa, Darcy Ribeiro abre sua obra Diários índios, feita entre 1949 e 1951 durante sua expedição às aldeias dos índios Urubus-Kaapor, no terreno fronteiriço entre Pará e Maranhão.

Os diários de campo foram a última obra publicada em vida, no ano de 1996. Após uma extensa carreira como político e educador, Darcy optou por publicar suas memórias do início da carreira na antropologia, quando era um jovem recém-saído da Escola Livre de Sociologia e Política, em São Paulo. Em artigo publicado no número 126 da revista Ciência Hoje, como homenagem póstuma a Darcy, Roque Laraia, professor emérito do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (DAN/UnB), escreve que “não há um ato de maior coragem e generosidade, para um antropólogo, do que a publicação de seus diários de campo. Não resta dúvida de que este foi um acontecimento importante para a antropologia brasileira”. Em entrevista à Darcy, Laraia completa: “ele começa a vida como etnólogo e termina como etnólogo”.

Além dos Diários, a experiência com os índios Urubus-Kaapor gerou também A arte plumária dos índios Kaapor, escrito em parceria com Berta Ribeiro, e Uirá vai ao encontro de Maíra: as experiências de um índio urubu que saiu a procura de Deus. Antes, entre 1947 e 1948, Darcy já havia feito trabalho de campo entre os Kadiwéu, no sul do Mato Grosso, depois publicando Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza.

Registro feito por Berta Ribeiro: Darcy e indígenas Urubus-Kaapor. Antropólogo teve vasta experiência com etnia em campo. Foto: Fundação Darcy Ribeiro


A oportunidade de conhecer essas etnias e produzir trabalhos de campo são diretamente relacionados a sua carreira no Serviço de Proteção aos Índios (SPI), atual Fundação Nacional dos Índios (Funai). Em 1947, o professor Herbert Baldus, da ESLP, indicou Darcy para trabalhar no SPI como sociólogo antropologista. Foi quando Darcy começou, de fato, a atuar como etnólogo.

No SPI, Darcy criou o Museu do Índio, em 1953, no Rio de Janeiro, e participou na criação do Parque Nacional do Xingu, em 1961, sempre focado na melhoria das condições de vida e de tratamento dos indígenas no Brasil.

“Darcy era um homem de partido, acreditava numa ciência aplicada. Possuía uma coerência política, e levou a todas as suas facetas essa vontade de agir rapidamente”, conta Laraia.

>> Leia íntegra da matéria Na Crista dos Índios, publicada na Darcy 15

SEDE DE TRANSFORMAÇÃO – Inconformado. Insatisfeito. Darcy Ribeiro tinha uma irreverência alegre diante do mundo. Ele não tinha medo de fazer discursos ácidos. Com a ironia de quem achava a modéstia algo “medíocre”, ele se considerava um fracassado – deixando claro que “detestaria estar no lugar de quem venceu”. Darcy via a desigualdade, a concentração de terra e o desrespeito a outras culturas sem um pessimismo rabugento. Eram considerados desafios que o impulsionavam a seguir em frente – ele mesmo e o Brasil. Longe de se proteger em concepções teóricas, o antropólogo adentrou na vida política, sujeitando-se a críticas, elogios e decepções. Inquieto, ocupou diversos cargos num período em que a democracia se mostrava tímida e instável.

Darcy foi ministro da Educação durante o breve governo de Jânio Quadros, que assumiu e renunciou a presidência da República em 1961. Depois, com a posse do vice João Goulart, historicamente conhecido por Jango, tornou-se ministro da Casa Civil. As visões de Darcy, em geral, alinhavam-se com as propostas vanguardistas do presidente, as quais ameaçavam a estrutura de poder do país e assustavam os setores conservadores.

A reforma agrária era uma das principais causas pelas quais Darcy lutava. Em entrevista ao programa Roda Viva, realizada em 1991, ele critica a expansão das plantações de soja que não alimentavam os brasileiros e diz que o golpe dos militares em 1964 foi feito contra uma política social de Jango, que queria organizar o país para seu povo. “É evidente que há um lugar para o banqueiro, há um lugar para o plantador de soja, mas tem que haver um lugar para o povo comer todo dia”, afirmou.

>> Leia a íntegra da matéria Antropólogo no Poder, publicada na Darcy 15

ESCRITOR POR PAIXÃO – Com um espanto que sacode o leitor de tudo o que ele estava acostumado, Darcy Ribeiro escreve romances. Foram quatro, ao todo. Queira ou não, Ribeiro romancista é uma surpresa com proporções continentais. Maíra, sua maior obra literária, não tem uma índia homônima ao título. Maíra é uma entidade divina indígena, usada junto a pronomes masculinos.

Darcy retira, de um modo inédito, o véu celeste com o qual todos os índios, malocas e florestas sempre estiveram cobertos. Não como a prosa romântica de José de Alencar, que os colocava em situações medievais europeias, em códigos de conduta e de honra cosmopolitas e rousseaunianos. Tampouco como a rapsódia modernista de Mário de Andrade, que decantou todas as lendas pejorativas e peçonhentas do brasileiro e destilou no índio. Nem herói, nem anti-herói. Só índio – com toda a complexidade de um povo sempre mitificado, mas nunca compreendido.

O olhar de Darcy era o mais aproximado possível: até em textos acadêmicos explicava ritos indígenas com certa paixão. O resultado disso é uma leitura com naturalidade – e certa crueza.

Professor de Letras da Universidade de Brasília, Erivelto da Rocha afirma: “Darcy Ribeiro estabeleceu uma relação tão próxima com o universo indígena que hibridizou os textos. Talvez seja a única acepção de sua literatura”. Boa parte da crítica literária comparou a obra de Ribeiro a traços da escola modernista – como fez o notável Antônio Houaiss no Jornal do Brasil – mas com discrição. Rocha completa: “É difícil definir sua obra. Apesar de uma base teórica fantástica, ele recorre a um texto quase falado, musical”.

>> Leia a íntegra da matéria A ficção da utopia, publicada na Darcy 15

Darcy Ribeiro durante solenidade em que recebeu título de Doutor Honoris Causa. Foto: Arquivo Central/UnB


EDUCADOR QUE INOVA – Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro pensaram juntos em fazer uma universidade inovadora, pois até então elas eram incapazes de ser agentes da transformação e desenvolvimento do Brasil. Em 1960, Darcy assim se expressou: “Comecei então a arguir sobre a necessidade de criar uma universidade e sobre a oportunidade extraordinária que ela nos daria de rever a estrutura obsoleta do ensino superior brasileiro, criando uma capaz de dominar todo o saber humano e colocá-lo a serviço do desenvolvimento nacional”.

As universidades da época reproduziam o conhecimento provindo do exterior, a pesquisa não privilegiava os temas da realidade brasileira, elas eram elitistas, burocráticas e os alunos não participavam das escolhas relacionadas à administração. Para Cristovam Buarque, reitor da UnB de 1985 até 1989 e ministro da Educação entre 2003 e 2004, Darcy pensava à frente, tendo a capacidade de entender a crise do conceito de universidade, pensar em uma solução radical e torná-la viável. “Primeiro porque ele era um gênio, e o gênio se destaca, é um visionário. Ele também tinha uma boa formação intelectual, era um homem de muita leitura”, completa.

Para Darcy, a universidade deveria ser um lugar de real estudo, que englobasse pesquisas e projetos, mas também a integração da comunidade. Dessa forma, ela seria um ambiente propício para a troca de ideias, criatividade e permitiria o florescimento de novas propostas científicas ou humanísticas, que possibilitariam a transformação social.

>> Leia a íntegra da matéria Um sonhador com os pés na realidade, publicada na Darcy 15

REVISTA DARCY E HOMENAGENS – No dia do centenário do ex-reitor da UnB, a Secretaria de Comunicação lança o novo número da revista Darcy, com a publicação de ensaio fotográfico inédito do ritual sagrado Kuarup, o último adeus ao antropólogo. Em consonância ao legado do pesquisador, a publicação também aborda os desafios relacionados à saúde indígena em um Brasil hostil a essa população, além da entrevista com o intelectual Ailton Krenak, primeiro indígena a receber o título de Doutor Honoris Causa pela UnB.

Durante a semana, dois eventos também marcam as celebrações pelos cem anos do antropólogo que batiza o primeiro campus da Universidade. Promovidos em parceria entre Decanato de Extensão e Fundação Darcy Ribeiro, o Centenário Darcy Ribeiro aqui (1922 – 2022), na quarta-feira (26), e o III Seminário Internacional UnB e Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), na quinta-feira (27), levam ao Memorial Darcy Ribeiro (Beijódromo) momentos de resgate de sua memória e de seu legado.

 

Confira vídeo da Fundação Darcy Ribeiro sobre o antropólogo: 

 

Leia também:

>> UnB participa da coleta de cédulas para Teste de Integridade das urnas eletrônicas

>> UnB convida comunidade acadêmica a contribuir para elaboração do PDI 2023-2028

>> Campus Darcy Ribeiro recebe estações de bicicletas compartilhadas

>> Eventos comemoram centenário de Darcy Ribeiro

>> Eric Nepomuceno apresenta Darcy Ribeiro aos estudantes no #InspiraUnB

>> Reitora assina acordo com instituto de pesquisa do Senado mexicano

>> Estudante elabora cartilha para campanha de conscientização sobre vaginismo

>> Nicolas Behr será um dos palestrantes do #InspiraUnB

>> Evento comemora dia do alfabeto coreano

>> UnB tem 193 pesquisadores entre os 10 mil melhores da América Latina

ATENÇÃO – As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seus conteúdos. Crédito para textos: nome do repórter/Secom UnB ou Secom UnB. Crédito para fotos: nome do fotógrafo/Secom UnB.