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Desigualdades sociais são abordadas na revista Darcy 20. Conteúdo é resgatado em celebração ao 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos 

Além das dificuldades na mobilidade urbana, Viviane Queiroz enfrenta diariamente os desafios de acessibilidade sendo estudante cega na Universidade. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB


Direitos para todos os humanos. É o que assegura a declaração oficializada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948. O documento, que em 2022 completa seus 74 anos, motivou a promulgação da data como Dia Internacional dos Direitos Humanos. Diante da proximidade do marco, o UnBNotícias dá visibilidade à temática a partir da publicação de duas de matérias do Dossiê do número 20, lançado em 2018, da revista Darcy, publicação de jornalismo científico e cultural da UnB.

Confira abaixo a segunda das reportagens:

O sol ainda não despontou e Viviane Queiroz já está de pé. Às cinco da manhã, a estudante do curso de Letras – Tradução Inglês prepara-se para sair de casa, na região administrativa do Gama, com destino ao campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília. Terminal, filas, três ônibus e um percurso de 40 quilômetros a esperam. A situação comum a muitos brasileiros ganha contorno particular: a graduanda é cega. “Nasci prematura. Os médicos falaram que a quantidade de oxigênio que precisei para viver queimou a minha retina e, por isso, nunca enxerguei.”

Em relação ao transporte coletivo, Viviane lista alguns desafios. Faltam acesso adequado às plataformas de embarque e tecnologias assistivas para informar linhas e pontos de parada. As limitações estendem-se a todos os ambientes, inclusive ao universitário. A jovem cita como exemplo prédios, áreas comuns, corredores e salas de aula, quase nunca adaptados às pessoas com deficiência. “O espaço físico é inacessível. É muito complicado andar por aqui”, comenta. Para a estudante, os recursos institucionais que oferecem serviços ou instrumentos inclusivos voltados ao processo de aprendizagem também são limitados.

Frente às dificuldades, Viviane reconhece a ajuda e compreensão de seus professores na graduação. Seu horizonte de esperança é a recente reativação do Laboratório de Apoio ao Deficiente Visual (LDV), da Faculdade de Educação da UnB. O local dispõe de uma impressora em Braille e dez computadores com softwares ledores, que transformam as informações textuais para o formato de áudio. A Universidade de Brasília trabalha na construção de uma política institucional de acessibilidade, instrumento norteador de ações voltadas às pessoas com deficiência.

Condições de vida digna, direito a educação, transporte e locomoção, promoção de políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência. Essas são as dimensões práticas e cotidianas do conceito de direitos humanos que aparecem no relato de Viviane. Contada assim, a história deixa evidente a noção de que esses direitos – ou a privação deles – impactam positiva ou negativamente o dia a dia de qualquer indivíduo. Na contramão dessa afirmação, estudos atestam outra percepção social sobre o tema.

Pesquisa feita pelo Instituto Ipsos revela que 28% dos brasileiros acham que os direitos humanos não têm relação com a vida cotidiana das pessoas. O percentual só é menor do que os constatados na Índia (35%) e na Arábia Saudita (30%), entre 28 países pesquisados. Outro dado mostra que seis a cada dez brasileiros – o maior registro do estudo – acreditam que as únicas pessoas beneficiadas pelos direitos humanos são criminosos e terroristas. Além do Brasil, a opinião é compartilhada por mais da metade dos entrevistados apenas no Peru, Índia e Argentina.

A maior parte dos brasileiros (74%) também avalia que as pessoas tiram vantagens injustas dos direitos humanos. Percepção próxima aos países que mais concordam com a afirmação, como Colômbia, África do Sul, Peru, México (78%) e Sérvia (76%). Os menores índices dessa associação são percebidos na Bélgica (44%), Suécia (47%) e Alemanha (51%). O levantamento foi aplicado pela internet em maio e junho de 2018, com 23.249 entrevistados de 16 a 64 anos.

Grande percentual da população brasileira e de outros países não considera que direitos humanos faça sentido em suas vidas, aponta dados de 2018 do Ipsos. Arte: Secom UnB


REALIDADE BRASILEIRA – Especialistas apontam várias hipóteses para justificar esse fenômeno social de não reconhecimento dos direitos humanos. Altos índices de violência, sensação de impunidade, privação de direitos essenciais e uma experiência democrática recente entram a lista de possíveis explicações. “Os direitos humanos se constituem por movimentos de luta pela dignidade humana e esta deve ser garantida a todos, fato que não se efetiva. Além disso, a fragilidade da democracia brasileira reforça o discurso de que os direitos humanos seriam privilégios e não direitos”, analisa a professora da Faculdade de Educação da UnB Sinara Zardo.

A educadora complementa que a falta de correspondência entre conceitos e práticas ocorre também porque a maior parte dos brasileiros não se reconhece como sujeito de direito, ou seja, possuidor e legítimo protagonista no exercício dessas garantias.

Paralelamente, os indicadores socioeconômicos do Brasil, nas mais diversas áreas, desvelam outras motivações para a construção de uma percepção negativa em relação aos direitos humanos.

Dados divulgados em setembro deste ano pelas Nações Unidas mostram que o Brasil ocupa a 79ª posição entre 189 países no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O levantamento considera o progresso de uma nação a partir da saúde, renda e educação, medidas por escala que varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1, maior o desenvolvimento humano. O índice do Brasil é de 0,759. Na América Latina, fica atrás de Chile, Argentina, Uruguai e Venezuela. Do outro lado, Noruega, Suíça e Austrália apresentam os melhores resultados.

IDH do Brasil era de 0,759 em 2018, segundo a PNUD. Arte: Secom UnB


A diferença entre os mais ricos e os mais pobres agrava a situação dos brasileiros. O país está entre as dez nações mundiais com o pior Coeficiente de Gini, índice que mede a concentração de renda. Estudo feito em 29 países pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG) indica cinco lugares nos quais a parcela mais rica da população recebe mais de 15% da renda nacional: África do Sul, Argentina, Colômbia, Estados Unidos e Brasil. Aqui, a população que representa 1% dos mais ricos concentra entre 22% e 23% do total da renda interna. A média internacional é de 12%.

Os números na área de segurança pública também assustam. Pela primeira vez na história, o país superou a marca de 62,5 mil homicídios em um ano. São 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, patamar 30 vezes maior do que o registrado na Europa. As informações referem-se a 2016 e foram publicadas no Atlas da Violência 2018, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em dez anos, mais de meio milhão de pessoas perderam suas vidas em decorrência da violência intencional.

As polícias registraram, também em 2016, quase 50 mil estupros em todo o país. No entanto, o próprio Atlas da Violência reconhece que a quantidade é subnotificada e cerca de 90% dos casos não são reportados aos órgãos oficiais. Com isso, estima-se que a prevalência varie de 300 mil a 500 mil a cada ano no Brasil. Os dados ainda revelam que 68% dos registros no sistema de saúde são de estupros cometidos contra crianças e adolescentes menores de 18 anos.

DESIGUALDADE DE RAÇA E GÊNERO – As estatísticas comprovam que, no Brasil, os pretos e pardos são a maioria dos analfabetos, têm menor acesso à educação, estão entre os segmentos mais pobres e compõem a maior parte da população carcerária. Em termos de trajetória profissional, estão entre a maioria dos desempregados, recebem os menores salários e ocupam os postos hierárquicos mais baixos. Para além da frieza das pesquisas, essas pessoas fazem parte de um segmento excluído socialmente, portanto, vulnerável a violações de direitos humanos.

A pesquisadora Renisia Garcia, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da UnB, afirma que o processo histórico de sistematização da discriminação racial no país estruturou o alicerce desse cenário de desigualdade. “O que era antes preconceito racial se configurou em discriminação e passou a estruturar uma sociedade que trata cidadãos e cidadãs de forma racialmente diferenciada”, considera.

Especialista em políticas públicas e questões raciais, Renisia argumenta que desde a escravidão no Brasil, a população negra é tratada como inferior. O Atlas de Violência 2018 ilustra essa herança. A taxa de homicídio da população negra, por exemplo, foi de 40,2 para cada 100 mil habitantes. O mesmo indicador para o resto da população foi de 16 mortes. Simplificando os números, 71,5% das pessoas assassinadas a cada ano no país são pretas ou pardas.

Embora o perfil da maioria das vítimas de assassinato seja composto por homens jovens e negros, os números também revelam a situação de vulnerabilidade do público feminino. Em 2016, foram assassinadas 4.645 mulheres, o equivalente a 4,5 mortes para cada 100 mil brasileiras. Em dez anos, a taxa de homicídios das mulheres negras aumentou 15,4%. Entre as não negras houve queda de 8%. “As mulheres negras no Brasil estão na lanterninha. Elas são as menos empregadas, as mais violentadas e as que mais têm seus filhos assassinados”, pondera Renisia.

HORIZONTES – Se os dados explicitam um cenário pessimista, as respostas dos pesquisadores da área convergem para um caminho de esperança: a educação em direitos humanos. “Investir na formação de sujeitos do direito, conhecedores dos seus direitos e deveres. Conscientes no exercício de sua cidadania e no reconhecimento de si e do outro, valorizando as diferenças e a diversidade, condições essenciais para a construção da democracia e da justiça social”, resume a professora Sinara Zardo.

Com esse propósito, o Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam) da UnB oferece atividades de ensino, pesquisa e extensão voltadas para membros da comunidade interna e externa. Há três décadas, o Centro trabalha os direitos humanos sob diversas perspectivas. Atualmente, possui grupos de núcleos temáticos e dois programas de pós-graduação, além das disciplinas ofertadas semestralmente, abertas a estudantes de qualquer curso.

A promoção de uma cultura de mais respeito, solidariedade, equidade e cidadania também integra as políticas da Universidade de Brasília. O marco desse compromisso foi a criação do Conselho de Direitos Humanos (CDHUnB), em 2017, e *da Câmara de Direitos Humanos, em 2022, ambos presididos pela reitora Márcia Abrahão, além da Secretaria de Direitos Humanos, pasta incumbida exclusivamente de tratar da temática. A política que orienta as ações internas de consolidação desses direitos e de enfrentamento às suas violações foi aprovada pelo Conselho Universitário (Consuni) em 2021, com contribuições da comunidade universitária*. Durante todo o ano de 2018, a campanha institucional UnB Mais Humana também homenageia os 70 anos da Declaração Universal de 1948 e promove ações de conscientização e de debate sobre a temática.

SAÚDE INDÍGENA – A temática dos direitos humanos também perpassa a nova edição da revista Darcy (número 28), inspirada no centenário do antropólogo e fundador da Universidade de Brasília, Darcy Ribeiro. Em homenagem a seu legado em defesa dos povos originários, as reportagens do Dossiê trazem um panorama do sistema de atenção à saúde pública às comunidades indígenas e uma pesquisa que leva tecnologia e garante dignidade no acesso ao tratamento da doença do bicho de pé entre esse o grupo.

>> Acesse a Darcy 28

 

Confira vídeo da Darcy com depoimento de Sílvia Badim sobre direitos humanos:



>> Quer assistir a série completa de entrevistas com a comunidade acadêmica sobre o tema? Acesse aqui

 

Informações entre asteriscos (*) foram acrescidas para atualização das ações institucionais mencionadas na matéria original, de 2018.

 

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