CONSTERNAÇÃO

O juiz da Corte Internacional em Haia começou sua carreira de professor na UnB, em 1978, e foi um dos fundadores do Instituto de Relações Internacionais

“Não sou notícia, faço história": Antônio Augusto Cançado Trindade deixa legado mundial no direito. Foto: Divulgação - CIJ/ONU

 

Morreu no último dia 29 de maio, aos 74 anos, o professor emérito da UnB Antônio Augusto Cançado Trindade. Notável jurista, o docente levou consigo o nome da Universidade: foi juiz da Corte Internacional de Justiça em Haia, principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas (ONU) e juiz e presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Na UnB, Cançado Trindade iniciou sua trajetória de professor em 1978. Ele foi um dos fundadores do Instituto de Relações Internacionais (Irel), onde atuou em seus últimos anos de docência. A reitora Márcia Abrahão e o vice-reitor Enrique Huelva lamentaram a morte de Cançado Trindade, destacando seu “legado eterno para o país”.

>> Reitoria lamenta a morte do professor emérito Antônio Augusto Cançado Trindade

Para o ex-reitor da UnB José Geraldo de Sousa Junior, colega do emérito na Faculdade de Direito, “a consternação nacional e internacional que a morte do professor Cançado Trindade provoca dá uma pálida medida de sua importância para a jurisdição internacional dos direitos humanos”. José Geraldo destaca que as teses e os conceitos do juiz marcaram a jurisprudência dos tribunais internacionais e provocaram um salto interpretativo para “vencer o obstáculo do legalismo positivista”.

Como forma de homenagear a memória de Cançado Trindade, a Secretaria de Comunicação da UnB reproduz abaixo entrevista exclusiva concedida pelo professor emérito à reportagem da revista Darcy, em 2018, na edição número 20, dedicada à temática dos Direitos Humanos.

Ao fim do material, estão disponíveis também o link para uma entrevista concedida em 2006 ao Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito, da Faculdade de Direito da UnB, publicada no boletim Constituição & Democracia – parceria com o Sindjus-DF – e o vídeo de homenagem ao professor Cançado Trindade produzido pela UnBTV.

 

 

UMA PERSPECTIVA GLOBAL
Entrevista exclusiva de Antônio Augusto Cançado Trindade, juiz da Corte Internacional de Justiça em Haia e professor emérito da UnB


A Declaração Universal de 1948 foi histórica e marcou “um movimento irreversível de resgate do indivíduo como sujeito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dotado de plena capacidade jurídica internacional”, diz Antônio Augusto Cançado Trindade, juiz da Corte Internacional de Justiça (CIJ), com sede em Haia (Holanda). Cançado Trindade é membro do principal órgão jurídico da Organização das Nações Unidas desde 2009, quando recebeu, da Assembleia Geral da ONU, a maior quantidade de votos da história das eleições para a Corte. Reeleito em 2017, é o primeiro brasileiro a ocupar a cadeira na CIJ por dois mandatos. Obteve apoio unânime de todos os países da América Latina em ambas as votações. Também integrou e presidiu, em dois períodos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

No Brasil, teve importante papel em defesa da adesão do país a tratados gerais de proteção internacional dos direitos humanos; no reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos; e na elaboração de dispositivo constitucional que garante a incorporação ao direito interno brasileiro de todos os direitos humanos consagrados em tratados internacionais dos quais o país seja parte. “Não sou notícia, faço história. Muito discretamente, venho fazendo história ao longo de mais de três décadas, inclusive na solução de importantes controvérsias em duas jurisdições internacionais e também mediante pareceres a organismos internacionais, como Acnur, Unesco, OEA e Conselho da Europa”, afirma. Atualmente, o juiz Cançado Trindade também é o guardião dos Arquivos de Nuremberg, ampla documentação sobre os crimes nazistas durante a II Guerra.

Darcy – O que representa comemorar sete décadas da Declaração Universal de Direitos Humanos?

Antônio Augusto Cançado Trindade – O ano de 2018 é particularmente significativo: marca os 70 anos das declarações Universal e Americana dos Direitos Humanos, assim como da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, adotada na véspera da Declaração Universal, em 9 de dezembro de 1948. A Declaração de 1948 abriu caminho à adoção de sucessivos tratados e instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, que hoje operam em base regular e permanente nos planos global e regional. Foi uma interpretação autêntica da própria Carta das Nações Unidas, no tocante a suas disposições sobre direitos humanos, dando assim conteúdo a algumas de suas normas. A Carta das Nações Unidas foi o tratado, assinado em 1945, que estabeleceu a ONU. A Declaração de 1948 fortaleceu-se ao refletir normas do direito internacional consuetudinário; seus princípios passaram a ser vistos como princípios gerais do direito. No decorrer de sete décadas de extraordinária projeção histórica, a Declaração Universal adquiriu uma autoridade que seus redatores jamais teriam imaginado ou antecipado. A comunidade internacional como um todo deu-lhe a dimensão que hoje tem. Porém, ainda resta um longo caminho a percorrer.

Darcy – Então, o documento retém a atualidade face aos novos desafios?

AACT – Sim, continua a inspirar o labor pela salvaguarda dos direitos da pessoa humana: os contínuos atentados aos direitos humanos requerem a preservação de seu legado histórico, e novas iniciativas. Às violações tradicionais, em particular de alguns direitos civis e políticos, que infelizmente continuam a ocorrer, têmse somado graves discriminações (contra membros de minorias e outros grupos vulneráveis, de base étnica, nacional, religiosa e linguística), além de violações de leis fundamentais, do direito internacional humanitário e do direito internacional dos refugiados. As próprias formas de violação têm se diversificado. Por exemplo, as cometidas por grupos clandestinos de extermínio, ou agentes não-identificados, sem indícios aparentes da presença do Estado, como no caso das vítimas indefesas do tráfico de pessoas. O atual paradigma de proteção (do indivíduo vis-à-vis o poder público) corre o risco de tornar-se insuficiente e anacrônico, por não se mostrar equipado para encarar as violações, entendendo-se que, mesmo nestes casos, permanece o Estado responsável por omissão, por não tomar medidas positivas de proteção. No tocante aos padrões consistentes de violações sistemáticas e continuadas de direitos humanos, preocupação dos órgãos internacionais de proteção é desenvolver mecanismos de prevenção e seguimento, tendentes a cristalizar um sistema de monitoramento contínuo dos direitos humanos em todos os países. No longo caminho que resta a percorrer, somente à luz de uma visão necessariamente integral de todos os direitos humanos avançaremos com eficácia na obra de construção de uma cultura universal de observância dos direitos inerentes à pessoa humana.

Darcy – Quais as suas prioridades neste segundo mandato na Corte Mundial?

AACT – Sustento com fidelidade o legado dos postulados da doutrina jurídica latino-americana e sua contribuição ao desenvolvimento progressivo do direito internacional. E, desde 2004, venho representando — e continuarei a fazê-lo — toda a América Latina no Conselho Diretor da Academia de Direito Internacional da Haia, que funciona, juntamente com a CIJ, no mesmo Palácio da Paz. Prosseguirei em meu empenho em fazer avançar a visão humanista da missão comum dos tribunais internacionais contemporâneos, de realização da justiça. Além disso, continuarei atualizando, em novas edições, alguns de meus livros publicados nos últimos anos em vários países e em distintos idiomas. A esse respeito, sou o sexto juiz (o único de todo o continente americano) a ter os votos individuais incluídos na coletânea Juízes, da principal editora jurídica europeia, a Nijhoff. Meus votos em ambos os tribunais internacionais encontram-se publicados também em língua francesa (em Paris) e em espanhol (na cidade do México).

Darcy – Qual sua análise sobre sua atuação na Corte Mundial?

AACT – Estou engajado na solução de todas as questões atualmente pendentes na CIJ sobre distintas áreas do direito internacional, o que me encanta: cada caso é um universo em si mesmo, quanto à temática e ao volume da documentação, e quanto às controvérsias apresentadas para decisão pela CIJ. Os casos contenciosos interestatais e os pedidos de parecer são muito documentados. Quanto à fase escrita do procedimento, é este o tribunal internacional mais documentado que existe (conheço também os demais); soma-se a documentação adicional apresentada posteriormente na fase oral, das audiências. No futuro próximo, haverá matérias de alta complexidade diante da CIJ, como tem ocorrido nos três últimos anos. Por exemplo, no caso da Aplicação da Convenção contra o Genocídio (2015), que encerrou as guerras nos Bálcãs ao longo da década de 1990, em que a CIJ evitou determinar uma violação daquela Convenção, apresentei um longo voto dissidente no qual alertei para a necessidade de interpretar e aplicar o referido acordo com atenção voltada aos grupos de indivíduos vulneráveis, e não às susceptibilidades dos Estados. Também alertei, em meu voto dissidente, no caso das Imunidades Jurisdicionais dos Estados (2012), para a necessidade de assegurar a proteção da pessoa humana face aos crimes internacionais e à invocação indevida de imunidades estatais. Em 2016, no julgamento sobre Armas Nucleares, em que a CIJ rechaçou demandas interpostas pelas Ilhas Marshall, apresentei extensos e contundentes votos, em que condenei firmemente as armas nucleares e conclamei todos os Estados ao pronto cumprimento da obrigação universal de desarmamento nuclear. Sou o primeiro dos juízes da CIJ, em toda a sua história, a ser reeleito pela ONU à Corte depois desta condenação das armas nucleares. Em breve, a CIJ terá que determinar as reparações em relação ao conflito armado e aos massacres na região dos Grandes Lagos na África (ocorridos na segunda metade da década de 1990), tidos como a Guerra Mundial Africana, esquecida com seus mais de 4 milhões de vítimas. E também iniciará o procedimento para atender ao pedido de parecer, a nós formulado recentemente pela Assembleia Geral da ONU, sobre a questão do reassentamento dos habitantes do arquipélago de Chagos, no contexto do processo histórico de descolonização das Ilhas Maurício.

Darcy – O senhor é o responsável pela custódia dos Arquivos de Nuremberg, documentação sobre crimes nazistas durante a II Guerra. Quais os projetos para proteção destes conteúdos?

AACT – Enquanto presidente da Comissão da Biblioteca da CIJ, eleito e reeleito por meus pares, tenho me dedicado à preservação e divulgação dos Arquivos de Nuremberg, e me sinto honrado em fazê-lo, em benefício da comunidade internacional. É algo de suma importância, ainda mais em nossos dias, face à onda inaceitável de negacionismo que hoje nos aflige. Em fevereiro deste ano, lançamos um livreto narrando e explicando todo o conteúdo destes arquivos. Uma vez digitalizados, já com o aval da consultoria jurídica do Secretário Geral da ONU e o consentimento das quatro potências aliadas da II Guerra Mundial, eles serão apresentados nas exposições permanentes do Museu Memorial do Holocausto (em Washington, EUA) e do Memorial da Shoah (em Paris), e este fato é inédito. O acesso aos Arquivos de Nuremberg é restrito, sujeito a autorização prévia, dada a necessidade de sua preservação cuidadosa. Em outubro de 2017, visitei pessoalmente, em Nuremberg, o Centro de Documentação recentemente aberto sobre as origens do nazismo. É impressionante e assustador. Também visitei o Palácio de Justiça, onde se realizaram os juízos do Tribunal de Nuremberg (1945-1946), marcando o fim do nazismo. Com esta visita, espero haver contribuído para consolidar a rota histórica de Nuremberg à Haia, na busca da realização da justiça no plano internacional. Mas o preocupante é que, posteriormente ao ocorrido na II Guerra Mundial, seguiram-se novos genocídios, em distintos continentes, como os do Camboja, Ruanda, Bálcãs, dentre outros. Há que preservar a memória viva das trágicas devastações do passado, que provocaram milhões de vítimas civis inocentes, inclusive crianças. Afinal, os seres humanos realmente não aprendem as lições do passado, como podemos constatar no mundo altamente perigoso em que hoje vivemos, ou sobrevivemos, com a ameaça crescente das armas nucleares, e o lamentável ressurgimento do fascismo e do neonazismo em alguns países de distintos continentes. Os seres humanos têm — sempre tiveram — o bem e o mal dentro de si, de nossos dias até séculos de volta ao livro do Gênesis, o primeiro da Bíblia cristã.

 

>> Entrevista exclusiva na Darcy nº 20

 

>> Entrevista publicada no boletim Constituição & Democracia

 

Assista abaixo à homenagem da UnBTV ao professor Antônio Augusto Cançado Trindade:

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