OPINIÃO

José Geraldo de Sousa Júnior é professor da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (Ceam); ex-Diretor da Faculdade de Direito e ex-reitor da UnB. Colidera o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua.

 

José Geraldo de Sousa Júnior

 

Quem luta por superar as desigualdades profundas do experimento capitalista-colonial, e a exigência política para vencer o abismo que esse experimento cria na forma de exclusão e de opressão, não deve ter dúvida do lado a tomar.

 

O Presidente Lula, em fidelidade a seu discurso e da prática que ele traduz, não deve ter dúvida de seu lado político na História, para conduzir sua promessa de uma governança que enfrente a miséria, a pobreza e a fome e não se renda às injunções que afrontam a Constituição para criar obstáculos à reforma agrária e querer subtrair dos povos indígenas originários seu direito próprio e o reconhecimento desse direito a seus territórios e a seu modo de existir e de preservar seus usos e tradições sociais e culturais.

 

O Presidente não deve ter dúvida e, se tiver, deve ficar ao lado dos pobres e dos povos indígenas. Deve vetar esse projeto emulativo de cizânia no plano institucional e extremamente perverso no plano político, em tudo antagônico ao conteúdo ético de sua proposta programática.

 

Com uma primeira aprovação pela Câmara dos Deputados, em maio de 2023, na noite de 27 de setembro, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei (PL) 2903/2023 totalmente contrário ao decidido pelo STF. Fixou o marco temporal, em 5/10/1988, e estabeleceu que a União poderá indenizar a desocupação das terras e validar títulos de propriedade em terras das comunidades indígenas. Ainda, antes de concluído o processo de demarcação, “não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre a área, garantida a sua permanência na área objeto de demarcação”.

 

O texto aprovado no Congresso Nacional ainda: autoriza garimpos e plantação de transgênicos em terras indígenas; permite a celebração de contratos entre indígenas e não-indígenas voltados à exploração de atividades econômicas nos territórios tradicionais;possibilita a realização de empreendimentos econômicos sem que as comunidades afetadas sejam consultadas;prevê que a regra de marco temporal poderá ser revista em caso de conflitos de posse pelas terras.

 

Retirei essa síntese da análise sempre aguda, do meu caro amigo Melillo Dinis do Nascimento - Assessor Jurídico e de Incidência Política da REPAM-Brasil (A Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM-Brasil é uma rede eclesial da Igreja Católica na Amazônia Legal), com o qual tenho compartilhado uma longa e rica convivência sempre mediada pela utopia de realização da paz e da justiça, é incisivo: “O que Lula deve fazer? Lula deve vetar a proposta legislativa do Congresso Nacional de ressuscitar o marco temporal”. Mesmo que, como é provável, “isto aumente o desgaste entre os poderes, pois há enorme possibilidade de o veto ser derrubado pelo Congresso Nacional.

 

E aí? Se pergunta Melillo em sua análise. Ele próprio responde: “Teremos duas realidades jurídicas: (a) uma decisão válida para todos do STF; (b) uma nova legislação aprovada pelo parlamento brasileiro. Haverá muito mais litígio e dificuldades nas produções do Estado brasileiro que tem muitas dificuldades em cumprir os seus deveres de demarcação das terras indígenas. Dados recentes indicam que o governo brasileiro acumula 166 processos de demarcação de terras indígenas. Alguns dos processos de demarcação tramitam há 40 anos e seguem sem decisão, apesar dos esforços deste ano, especialmente do Ministério dos Povos Indígenas. A lentidão deve se agravar com produção do Congresso Nacional sobre o marco temporal”.

 

Para Melillo, mesmo com vários cenários que se descortinam, entre eles o próprio prestígio do Presidente em contínua e segura ampliação – conforme pesquisa CNT/MDA

 

Segundo o advogado Antônio Carlos Castro, oKakay, ainda que o Parlamento derrube o veto do Presidente, o Supremo tende a reforçar a inconstitucionalidade da lei: “Certamente algum partido ou entidade vai levar essa questão ao STF, que vai decidir.”

 

A opinião do advogado é confortada pelo jurista, professor, procurador e ex-Ministro da Justiça Eugênio Aragão. Para o professor, meu colega na UnB, mais que uma posição equivocada, vazia de juízo de constitucionalidade, a recente deliberação no Senado, se apresenta como um jogo de força, ou como ele sustenta, uma “guerra contra o STF [que] é guerra contra as instituições e a democracia”: “A tentativa de submeter decisões do STF ao crivo deliberativo do Legislativo é abolição da separação de poderes”, diz Eugênio Aragão.

 

Para ele, “o julgamento do Recurso Extraordinário 1017365 – o rechaço ao denominado “marco temporal” para conferir titularidade ao direito indígena sobre terras originárias  -pelo Pleno do STF “gerou revolta dos ruralistas, membros da chamada Frente Parlamentar da Agricultura. Decidiu a corte por considerar incompatível com o regime de posse indígena estabelecido no Art. 231 da Constituição, o chamado “marco temporal”, tese política que expressa pretensão de limitar a demarcação dos territórios dos povos indígenas àqueles que efetivamente ocupavam na data da promulgação do texto constitucional em 1988”.

 

Volto à abertura do meu texto. “Na dúvida, fique ao lado dos pobres”. A frase, uma das mais emblemáticas de Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT), guiou sua trajetória de quarenta anos de luta pelos direitos de indígenas, ribeirinhos e camponeses na Amazônia. Numa outra perspectiva, mas colocando-se em face de uma mesma opção, o Papa Francisco, em face de representações de povos indígenas, não tem dúvida: “Nós, que não habitamos nestas terras, precisamos de vossa sabedoria e dos vossos conhecimentos para podermos penetrar – sem o destruir – o tesouro que encerra esta região”. Numa atitude de reverência, respeito e proximidade diante dos povos nativos, reconhece a pluralidade e a vasta riqueza biológica, cultural e espiritual de cada povo: “Um verdadeiro tesouro a ser preservado e cuidado para o bem da humanidade”.

 

Publicado originalmente em 4 de outubro no site Brasil Popular/DF 

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