PIONEIRISMO

Com oferta ampliada de cursos e vagas, processo seletivo registra mais adesão em 2019 em relação ao edital anterior. Provas em 23 de março, Brasil afora

 

Aprovada no vestibular indígena UnB/Funai em 2017, Kássia Gomes estuda Enfermagem na Universidade. Foto: Arquivo pessoal

 

De origem Xerente, etnia habitante da região central do Tocantins, a estudante de Enfermagem Kássia Gomes dos Santos, 20 anos, é a primeira de sua comunidade a cursar uma graduação na área da Saúde. O acesso à Universidade de Brasília se deu em 2018, pelo vestibular indígena. Para a jovem, a participação na seleção trouxe chance de se realizar profissionalmente e de contribuir, em futuro breve, para sanar carências na promoção à saúde em sua aldeia. “O mais gratificante é ver o pessoal da minha comunidade com orgulho de falar que eu sou da UnB. Para mim, foi a melhor coisa que aconteceu”, alegra-se.

As inscrições para o vestibular indígena de 2019 se encerraram em 15 de fevereiro. Neste ano, a seleção traz novidades. Além da ampliação do número de cursos e vagas, os aprovados ingressarão somente no segundo semestre. Serão 85 vagas distribuídas em 30 graduações, nos campi Darcy Ribeiro, de Ceilândia (FCE) e de Planaltina (FUP). Em 2017, quando foi aberto o edital anterior, os quantitativos eram de 72 vagas para 22 cursos.

A mudança se reflete no crescimento do número de concorrentes: desta vez, 772 candidatos – 56 a mais que na edição passada – disputam oportunidades de ingresso na instituição. Oito localidades receberão as provas objetiva e discursiva, marcadas para o dia 23 de março, além da etapa de entrevistas. As cidades são Aracruz (ES) – Aldeia Caieiras Velhas –, Boa Vista (RR), Brasília (DF), Imperatriz (MA), Manaus (AM), São Gabriel da Cachoeira (AM), Tabatinga (AM) e Tacaratu (PE) – Aldeia Brejo dos Padres.

 

Tabatinga, no Amazonas, é o local de provas com maior número de inscritos no vestibular indígena 2019 da UnB. Etnia Ticuna tem presença marcante na região. Dados: DEG/Cebraspe. Arte: Francisco George Lopes/Secom UnB

 

Os polos e graduações ofertados foram definidos conforme as demandas das comunidades indígenas. Anualmente, uma comissão, formada pelos decanatos de Ensino de Graduação (DEG) e de Assuntos Comunitários (DAC), movimentos indígenas, além de Funai e Ministério da Educação (MEC), é responsável por discutir coletivamente tais necessidades e adequá-las ao processo seletivo, além de atuar na construção do edital e das provas.

“Elencamos com os estudantes indígenas os cursos da Universidade que seriam de maior relevância para as comunidades e para o mercado de trabalho onde atuarão. Com essa relação, o DEG solicitou aos departamentos o interesse em oferecer as vagas”, detalha a coordenadora da Questão Indígena (DIV/DAC), Cláudia Renault. Nesta edição, os cursos com mais inscritos são Medicina (198), Enfermagem (86) e Psicologia (72). 

MAIS DIVERSIDADE – Desde 2006, a UnB adota processo seletivo exclusivo para ingresso de estudantes indígenas, com a oferta de vagas suplementares em cursos de graduação. Realizada por meio de acordo de cooperação técnica com a Fundação Nacional do Índio (Funai), a iniciativa é pioneira entre universidades federais de todo o Brasil.

Na avaliação de Cláudia Renault, a aproximação entre universidade e comunidades indígenas é fundamental para promover a democratização no acesso ao ensino superior e a integração entre os diferentes saberes, sejam acadêmicos ou tradicionais. “A Universidade tem o papel de promover esse diálogo de saberes. A inclusão dos indígenas no ambiente acadêmico irá proporcionar o retorno dessas pessoas para suas comunidades ou instituições para defender os seus direitos e a garantir sua cidadania e autonomia”, afirma.

O coordenador substituto da Diretoria de Acompanhamento e Integração Acadêmica (Daia/DEG), Clayton Mendes, acredita que a consolidação do processo seletivo impulsiona a transformação da instituição em um espaço mais diverso. “Iniciativas como essa fazem com que a Universidade seja múltipla, plural e tenha grupos de origens diferentes interagindo. Os indígenas têm suas vivências, experiências e visão de mundo. É uma troca bastante rica e a UnB ganha muito com isso.”

A visão é partilhada pelo egresso dos cursos de Antropologia e de Sociologia, Jósimo Constant Kãdeyruya. Apesar das adversidades encontradas ao longo de sua trajetória acadêmica, o jovem, descendente da etnia Puyanawa, do Acre, não deixou de lutar para garantir que o espaço acadêmico pudesse ser usufruído por outros indígenas.

Jósimo Constant, primeiro indígena formado em Antropologia na UnB, ao lado da reitora Márcia Abrahão. Foto: Beto Monteiro/Secom UnB

 

Atualmente doutorando no Museu Nacional do Rio de Janeiro, Jósimo reconhece a conquista alcançada pelos indígenas e o potencial da presença das comunidades no ensino superior.

“Realmente é um vestibular que abre oportunidade para os estudantes indígenas cursarem nível superior e, futuramente, darem um retorno para a sua comunidade. Porque é isso que queremos: retornar para as nossas aldeias para trabalhar”, destaca. Jósimo também tem se dedicado à elaboração de um livro sobre as histórias e cultura de seu povo.

ACOLHER PARA SOMAR – Diferenças linguísticas, pedagógicas e culturais e limitações socioeconômicas. Embora a chegada à universidade traga aos indígenas alguns desafios de adaptação, tais entraves são minimizados com acolhimento afetuoso para que a passagem pela instituição seja a mais proveitosa possível.

Desde a aprovação, os estudantes são acompanhados por diversas instâncias da Universidade. Uma das primeiras etapas da recepção é o contato com as próprias unidades acadêmicas. “Quando os alunos fazem o registro e se matriculam, conversamos com os coordenadores de curso para avisá-los sobre a entrada do estudante indígena e informamos que ele necessitará de acompanhamento para cursar as disciplinas”, menciona Cláudia Renault.

Para se estabelecerem em seus primeiros passos na instituição, assim que realizam o registro acadêmico, os calouros passam a contar com a isenção na taxa de alimentação no Restaurante Universitário (RU). Inicialmente, o benefício é concedido até que a avaliação socioeconômica seja concluída. Após a análise, caso seja detectada real necessidade, os estudantes são incluídos no Programa de Assistência Estudantil e têm garantida a bolsa alimentação até a conclusão do período regulamentar do curso.

A Coordenação Indígena (Coquei) também conta com estrutura para amparar os novos estudantes. “Temos assistente social, psicólogo e auxiliar administrativo que acompanham os estudantes em suas dificuldades, sejam sociais, culturais ou econômicas. Em eventual necessidade, esses profissionais requisitam o auxílio socioeconômico a eles”, explica a coordenadora da unidade.

MAIS ESTRATÉGIAS – Outras iniciativas têm favorecido o desenvolvimento acadêmico, a integração social e a permanência de indígenas na Universidade. Tutores do projeto Raízes, encabeçado por DEG, DAC e Assessoria de Assuntos Internacionais (INT), são responsáveis por proporcionar acolhimento de qualidade a esses estudantes e aos alunos estrangeiros refugiados e selecionados pelo Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G).

Além de apresentarem as estruturas e serviços da Universidade aos novatos, os tutores oferecem apoio em disciplinas cursadas, colaboram na concepção de estratégias para melhorar o desempenho acadêmico, intermediam o diálogo com professores, coordenadores e colegas e se dispõem a assisti-los em outras questões da vida acadêmica.

Coordenador na Diretoria de Acompanhamento e Integração Acadêmica (Daia/DEG), Clayton Mendes ressalta que políticas voltadas a indígenas são prioritárias na Universidade. Foto: Heloíse Corrêa/Secom UnB

 

“A Universidade assumiu essa política de ter um grupo de estudantes indígenas aqui. É um compromisso grande, então queremos recebê-los da melhor forma possível. Temos a perspectiva que eles venham, se sintam acolhidos, concluam os cursos de sua escolha e retornem a sua região de origem para desenvolver um trabalho junto às suas comunidades”, reforça Clayton Mendes.

Para a estudante Kássia Gomes, receber o apoio dos tutores foi um dos diferenciais para que conseguisse dar continuidade aos estudos. “Entrar na UnB foi um grande privilégio e possibilitou o contato com realidade totalmente diferente da que eu estava inserida. Até o segundo semestre, eu tinha muita dificuldade por conta das disciplinas, mas os outros alunos eram bastante receptivos e tentavam me ajudar”, relata.

Novas estratégias têm sido estudadas pela administração superior para atender às demandas mais urgentes das comunidades, como o apoio na acomodação dos estudantes, em sua maioria oriundos de outros estados.

Somadas às ações institucionais, os estudantes também podem requisitar auxílio do governo federal, por meio do programa Bolsa Permanência. A política consiste na concessão mensal de auxílio financeiro a estudantes indígenas, quilombolas e em situação de vulnerabilidade socioeconômica vinculados às instituições de ensino superior. A UnB monitora a implementação da iniciativa, oferecendo suporte na requisição da bolsa e acompanhando a situação dos estudantes para homologar o benefício.

 

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