Neste 7 de fevereiro, Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, relembramos conteúdo publicado na 20ª edição da revista Darcy, de 2018

Fetxawewe é uma jovem liderança indígena de Brasília. Ele foi personagem de material especial publicado em 2018, na 20ª edição da Darcy. Imagem: Reprodução/Darcy

 

Fetxawewe Tapuya Guajajara Veríssimo, 19 anos, herdou do pai, o falecido pajé Santxiê Tapuya, o gosto pela medicina indígena. Crescer cercado pela natureza e imerso nas tradições de sua etnia o fez conhecer desde muito cedo o potencial de cura da biodiversidade do Cerrado. Do quintal de casa extraía os recursos para seu aprendizado: “Colhíamos sementes e frutos. Meus pais me ensinavam para que servia cada planta”, recorda.

A vista do lugar era outra: a comunidade indígena do Bananal, no final da Asa Norte, em Brasília, hoje está cercada por prédios e asfalto. Árvores, animais e nascentes, que antes forneciam o sustento das famílias, já não existem com tanta abundância. Bermuda, camiseta vermelha, colar de sementes, brinco de pena, óculos, e marcas, praticamente apagadas, de pinturas pelo corpo compõem o visual do indígena durante entrevista à Darcy.

“Nunca acreditávamos que ia faltar água, nossos alimentos, como pequi, cajuzinho do cerrado, nem animais, como tatu, lobo guará e tamanduá bandeira”, lamenta Fetxawewe, cujo nome, uma mistura da língua yatê com tupi, significa “raio e brilho do sol”.

O pai, Santxiê, foi um dos primeiros indígenas a se fixar em definitivo na região, após a fundação de Brasília. O pajé deixou a cidade de Águas Belas, no sertão pernambucano — terra originária dos povos fulni-ô tapuya — para chegar ao Planalto Central em busca de melhores condições de vida.

“Os indígenas fixaram-se ali porque havia alimentação e água nas proximidades. Meu pai chegou há mais de 40 anos”, conta o jovem estudante de Direito. Fetxawewe viu a especulação imobiliária ameaçar a permanência de seus iguais. Originalmente com mais de 50 hectares, a área, hoje conhecida como Santuário dos Pajés, servia como ponto de pouso e de encontro para cerimônias religiosas, na época da construção da capital federal.

Logo estabeleceu-se forte conexão entre os novos moradores e o território. “Pajés, xamãs, curandeiros e rezadeiras vieram para cá e sentiram as forças espirituais do local, por isso é chamado Santuário dos Pajés”, explica o herdeiro fulni-ô tapuya. Os indígenas também relataram a existência de um cemitério ancestral, onde foram enterrados os pertences dos falecidos que por ali transitaram. Esses indícios os levaram a considerar as terras como sagradas.

Quando se iniciou a construção do setor habitacional Noroeste, um dos últimos do Plano Piloto de Brasília, as famílias reivindicaram a posse da terra a partir de 2008. Um acordo para demarcação do terreno para 32,4 hectares foi firmado com a Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal (Terracap) em junho de 2018. O reconhecimento trouxe alívio para a etnia fulni-ô tapuya, única contemplada nas negociações. Outras etnias que habitam áreas próximas do Santuário, como os karirixocó e os tuxá, deverão ser realocadas.

A conquista do Santuário, entretanto, não foi pacífica. Em meio ao avanço de edifícios que ali se erguiam com a promessa de estruturar o primeiro bairro ecológico do país, perseguição e violência impactaram a vida dos indígenas. Preocupado com as ameaças, o pai decidiu mandar Fetxawewe e o irmão para o Maranhão. Fetxawewe só pôde retornar quatro anos depois. As ameaças permaneceram. Sua casa foi invadida e a água dos mananciais que alimentavam o Santuário foi contaminada.

“Já aconteceu de entrarem na nossa casa e não levarem nada, ou chutarem a porta, só para assustar”, relata. As situações de insegurança não fizeram sua família desistir. Em outro episódio de violência, o jovem atirou-se na frente de homens armados e tratores que adentraram o local para desmatá-lo: “Só estávamos eu e minha mãe. O motorista de um dos veículos falou que se eu não saísse, ia embora num saco preto, porque índio não merecia terra. Eu não saí. Fui arrastado por cem metros”.

O jovem também se lembra da destruição do herbário. A coleção teria sido reunida por Santxiê e possuiria cerca de 800 espécies de plantas medicinais, além de exemplares de outros biomas brasileiros. “Era um herbário reconhecidíssimo por causa das plantas fitoterápicas do Cerrado. Em um dos ataques que sofremos, ele foi queimado. Sobraram pouquíssimas mudas”.

Com o processo de demarcação finalizado, os ataques cessaram. Preconceito, desrespeito e medo persistem. Preservar as tradições em meio ao caos urbano é um desafio. Rituais de cura praticados pela comunidade, como a Jurema Sagrada e o Ayahuasca — ambos envolvendo a ingestão de bebidas psicoativas à base de raízes ou de plantas nativas da floresta amazônica —, tornaram-se cada vez mais raros nos últimos tempos, em função da falta de privacidade.

“Temos que fazê-los de madrugada, porque às vezes aparecem drones para nos observar ou alguém coloca uma música bem alta nos prédios. Precisamos muito de um momento com a natureza e com nossa espiritualidade e ancestralidade para cultuar aquilo em que acreditamos”, revela.

Rituais de cura, como a Jurema Sagrada e o Ayahuasca, são praticados no Santuário dos Pajés. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

TENSÕES AGRÁRIAS – A situação das comunidades do Santuário dos Pajés é similar à de outros povos indígenas que lutam por suas terras no Brasil, fato historicamente relacionado a conflitos. Os embates ocasionam o desalojamento de comunidades, comprometem as condições de vida daquelas ainda existentes e podem levar ao extermínio de algumas etnias.

“O indígena vive no próprio país a situação de um refugiado”, compara o pesquisador do Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (Obind) da UnB, Cristhian Teófilo. Em especial, a expansão do agronegócio e a exploração de recursos naturais, como minérios e madeira, ameaçam a permanência desses povos em suas terras nas últimas décadas.

Em 2016, foram registrados 59 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio em áreas reivindicadas ou demarcadas. Desses, grande parte estava relacionada à retirada ilegal de madeira. No mesmo ano, 12 conflitos por direitos territoriais ocorreram no país, alguns com desfechos violentos. Os dados são do Conselho de Missionários Indigenistas (Cimi).

A escalada das ações violentas e a ineficácia das medidas protetivas aos direitos dos indígenas também resultam em mortes trágicas. Dos 70 assassinatos em tensões por terra contabilizados em 2017 pela Comissão Pastoral da Terra, 13 foram contra indígenas.

Para intervir nessas situações, pesquisadores do Obind têm monitorado, por meio de sites governamentais, da sociedade civil e de organizações indigenistas, além de alertas das próprias comunidades, a ocorrência de conflitos entre indígenas e latifundiários no Brasil. O grupo acompanha ações protocoladas no Supremo Tribunal Federal referentes a disputas envolvendo povos indígenas. Estudos e monitoramento de políticas públicas voltadas aos indígenas e das violações de seus direitos também integram as ações do Observatório.

TERRAS SEM DONO – A insegurança das populações indígenas é agravada pela morosidade nos trâmites para oficialização de seus territórios. Existem atualmente 1.296 terras indígenas no país, mas o Cimi aponta um passivo de 836 áreas a serem demarcadas. Dessas, 63,3% não tiveram qualquer procedimento administrativo tomado por parte dos órgãos federais.

O pesquisador Cristhian Teófilo ressalta que o direito à territorialidade, garantido pela Constituição, está atrelado à própria sustentação da identidade desses povos. Mesmo assim, o cenário atual é de ameaça à efetivação desse direito, na visão do especialista.

Leia a publicação na revista Darcy. Imagem: Reprodução/Darcy

 

Entre os obstáculos, uma proposta de emenda constitucional em tramitação quer transferir a competência de demarcação das terras do poder Executivo ao Congresso Nacional; proibir a ampliação de terras já demarcadas e oferecer indenização aos atuais proprietários das áreas, benefício hoje concedido somente pelas benfeitorias realizadas nos locais.

Para Teófilo, se aprovadas, tais medidas beneficiariam os ruralistas e tornariam mais vulnerável a situação das comunidades tradicionais, dando margem para a exploração econômica de seus territórios. Apesar de descrever os padrões de demarcação e regularização das terras como exemplares, o pesquisador pondera que o acompanhamento após os processos é falho. “Os instrumentos de fiscalização existem, mas não são eficazes. A maioria dos territórios indígenas está invadida. A fiscalização e a manutenção são precárias”, analisa.

A participação indígena nos processos políticos é primordial para mudar esta realidade e avançar na garantia de seus direitos constitucionais, na análise de Teófilo, que opina: “A falta de representação indígena na nossa política institucional os coloca em grande desvantagem, gerando problemas, como projetos de desenvolvimento que são decididos à revelia da consulta a eles”.

 

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