OPINIÃO

Thiago Flores é cientista social, jornalista e produtor cultural na SECOM/UnB. Fã de hip-hop, é diretor da pesquisa e da exposição PESO- Histórias do Rap do Distrito Federal.

Thiago Flores

 

Em 52 anos de história, o hip-hop saiu das quebradas e passou a ocupar lugares físicos e simbólicos inimagináveis no início dessa trajetória. Dos guetos aos centros, do underground ao mainstream, das cadeias às universidades, das páginas policiais aos cadernos de cultura, se tornou um dos pilares da cultura contemporânea global.

 

O movimento foi legitimado como uma das mais expressivas manifestações da diáspora negra em todo mundo, um modo de viver, pensar e agir capaz de transformar realidades individuais e comunitárias, historicamente abandonadas pelo sistema.

 

Seus quatro elementos artísticos se desenvolveram, se diversificaram e existem autonomamente para além do movimento. DJs e MC’s transformaram o rap em um dos gêneros musicais mais ouvidos no mundo. O graffiti manifesta impacto estético no mundo das artes, da publicidade e da moda. O break virou esporte olímpico.

 

Antes ridicularizados e menosprezados pela crítica cultural e pela academia, hip-hoppers do mundo todo agora ocupam os bancos universitários e as estantes das mais refinadas premiações, como os doutores honoris causa concedidos a Mano Browns, Racionais e Emicida, e o prêmio Pullitzer de Música vencido por Kendrick Lamar, único concedido para um artista fora do jazz e da música erudita.

 

As interações cada vez mais profundas e diversificadas do hip-hop com o mercado permitem para alguns a acumulação de capital e a transformação material de muitas vidas. Se esse enriquecimento ainda não é tangível para todos, é certamente um horizonte, uma perspectiva profissional inimaginável há 20 anos.

 

Os avanços da cultura hip-hop são evidentes, até para quem não acompanha esse universo de perto. Mas e aí? O hip-hop cumpriu sua missão? A favela venceu?

 

Meio século depois da emergência do movimento, o hip-hop se vê obrigado a enfrentar simultaneamente tensões internas cada vez mais agudas e estruturas externas parecem se repetir historicamente. A mesma inserção no mercado que permite enriquecer jovens pretos e periféricos praticantes dos quatro elementos introjeta uma mentalidade cada vez mais materialista, individualista e pueril, muito distante do corpo filosófico fundante da cultura.

 

A indústria cultural de massa pouco se preocupa com a história, com as referências e os valores do hip-hop. Quanto mais espaço se ocupa no mainstrean, mais esvaziadas ideologicamente são manifestações promovidas. A união desse esvaziamento com a busca por enriquecimento pessoal por si só podem ser ameaças à integridade coletiva do movimento. (Cabe aqui um parênteses importante: ao apontar essa tensão, não condeno, em absoluto, o ato de ganhar dinheiro. A acumulação material é, talvez, um dos parâmetros de sucesso mais fortes na nossa sociedade e uma meta incentivada incansavelmente. Muito dinheiro só parece ser um problema quando está nas mãos de manos e minas pretos e periféricos, somente nessa situação que a ostentação de joias, carros e roupas de grife parece incomodar. Não se nota tal incômodo com o enriquecimento igualmente pujante das duplas sertanejas).

 

Para além dos debates internos, o hip-hop enfrenta dilemas sociais que parecem praticamente inalterados ao longo do curso de sua história recente. Em 2 de outubro de 1992, durante uma rebelião, a Polícia Militar do Estado de São Paulo assassinou 111 internos da Casa de Detenção do Carandiru. Trinta e três anos depois, em 28 de outubro de 2025, a polícia do RJ deixou 115 mortos em uma megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão.

 

Em 1997, a banda Planet Hemp passou cinco dias presa em Brasília acusada de apologia ao uso de drogas. Depois de uma confusão generalizada durante a virada cultura de São Paulo em 2007, o grupo Racionais MC’s sofreu um boicote político e comercial durante anos, culpabilizados pelo confronto entre o público e polícia. Em maio e julho de 2025, Poze do Rodo e Oruam, expoentes do trap carioca, foram presos acusados de associação ao tráfico e apologia ao crime. Oruam dá nome a um projeto de lei, do vereador André Salineiro (PL), que visa proibir a contratação pelo Estado de artistas envolvidos nessas duas ofensas.

 

A semelhança desses episódios não é mera coincidência. O povo pobre e preto continua sendo alvo: do descaso, do racismo, do silenciamento sistemático. Não há cordão de ouro, mansão em Alphaville e nem carro importado suficientes que consigam sozinhos mudar esse contexto.

 

E é por isso que o hip-hop continua sendo indispensável para a sociedade, mas especialmente para pretos, periféricos e minorias de todos os tipos. Djs, MCs, grafiteiros e bboys e bgirls são cronistas, sociólogos, ativistas e revolucionários.

 

Desde o princípio, o hip-hop constrói autoestima e transformação por meio do conhecimento, do protesto e da arte, tendo o progresso coletivo como fio condutor das ações. Que o movimento continue sendo escola, hospital, horizonte e tábua da salvação, mas, antes de tudo: o pesadelo do sistema.

 

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