Benedetta Bisol
Dia 13 de outubro de 1965 foi, para Yvonne Jean, um daqueles dias nublados, por dentro e por fora, em que só dá vontade de reclamar de tudo. Era uma quarta-feira, e a jornalista abria assim sua coluna Ensino no dia a dia, no Correio Braziliense:
“O tempo continua sem sol como continua triste a Universidade de Brasília, que pouco se parece, esta semana, com um campus universitário.”
No domingo anterior, o reitor Laerte Ramos de Carvalho havia solicitado ao Departamento Federal de Segurança Pública a ocupação do campus, efetivada na segunda-feira. Em reação, Yvonne reproduziu longos trechos do Plano Orientador da UnB de 1962, contrapondo à brutalidade do que descrevia como “guardas, polícia, brucutu, rádio-patrulhas e todo o mais” o ideário fundante de uma universidade inovadora e autônoma: “um lugar feito para estudar e pesquisar”, transformado pela crise “em um lugar de guerra”.
No fim de 1964, apesar de já ter sido detida em julho, Yvonne se posicionava de modo veemente contra a intervenção militar no campus. O incipit meteorológico parece quase uma premonição de tempos cada vez mais sombrios. Quatro anos depois, o Jornal do Brasil publicaria a célebre previsão sobre o AI-5:
“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras.”
Na indignação de Yvonne, as grandes batalhas sempre se entrelaçam às minúcias do cotidiano. Por elas começam, com atenção ao detalhe. A coluna de 13 de outubro comentava, além da ocupação do campus, a estreia frustrada da peça A Menina e o Vento, suspensa após um acidente na montagem do cenário. Yvonne deseja melhoras aos que sofreram o acidente, mas não deixa de criticar duramente o grupo de teatro: precisava mesmo anunciar a peça “em benefício da Criança Pobre”? “Crianças não devem ser rotuladas”, escreve. “Não devemos admitir crianças-párias.”
De acidente em acidente, de obstáculo em obstáculo, Yvonne encerra o artigo com mais uma notícia amarga: não haverá a Festa da Criança, preparada para a Escolinha da UnB, “por óbvias razões”. A Escolinha deveria acolher crianças de 5 a 11 anos “para pintar, desenhar, modelar, fazer colagens e criar um teatro de fantoches”. Sua inauguração, primeiro adiada, foi definitivamente suspensa poucos dias depois.
Em 3 de novembro de 1965, sua idealizadora, Ana Mae Barbosa, assinou a demissão coletiva de professores em protesto contra as ingerências militares e partiu para Recife. Dessa vez, a coluna de Yvonne transborda, mais do que irritação, uma tristeza lírica:
“Infelizmente, a Escolinha que o Instituto de Artes da UnB planejara e tencionava inaugurar em fins de outubro não será mais criada, e a coordenadora da Escolinha, Ana Mae, já enterrou o seu sonho no charco onde ‘arvorezinhas sujas levantam os vestidos com cachos de lama pingando’...”
Também Yvonne, que atuava no Centro de Extensão Cultural da UnB, acabaria se afastando da universidade. A primeira Escolinha de Arte da UnB mereceria figurar entre os marcos da “universidade interrompida” destacados por Roberto Salmeron em seu célebre livro. Sessenta anos depois, pensamos em um projeto de extensão, rememorando essa experiência negada através de uma nova ocupação, agora festiva.
Sexta-feira, dia 24 de outubro, às 18h30, apresentaremos no saguão do prédio FE5, em frente ao auditório Dois Candangos, os primeiros resultados deste percurso. A exposição Cerrado no Campus reúne desenhos de crianças e inaugura o projeto, que se desdobrará ao longo dos próximos meses.
Dedicada à memória de Yvonne Jean (Antuérpia, 1911 – Brasília, 1981), a pequena mostra também presta homenagem à professora doutora Ana Mae Barbosa, cuja trajetória intelectual e de vida pode ser admirada na exposição recente.
O que, na UnB de 1965, foi silenciado pela força transforma-se, sessenta anos depois, em desenho, cor e linha — na persistência das pequenas mãos que voltam a ocupar o espaço universitário com o que há de mais necessário para transformar a realidade: a capacidade de imaginar mundos.
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