OPINIÃO

Eduardo Bessa Pereira da Silva é professor da Faculdade UnB de Planaltina. Redige o blog Ciência à Bessa na rede Scienceblogs Brasil e é membro do comitê educacional da Animal Behavior Society.

Eduardo Bessa Pereira da Silva

 

Faleceu na quarta-feira (02/10), na Califórnia, a primatóloga Jane Goodall, aos 91 anos. Goodall foi uma poderosa voz em defesa da conservação ambiental, especialmente dos grandes primatas, nossos parentes mais próximos. Com o raro dom de trazer esperança em seu discurso conservacionista, Jane arrebanhava plateias, mobilizando muito mais a opinião pública do que aqueles que se apoiam na tática de promover o pânico. Foi isso que fez em sua visita à Universidade de Brasília (UnB), em outubro de 2023.

 

Nos últimos anos, Jane se dedicava à conservação ambiental, numa aparente guinada de sua carreira. No entanto, ela ganhou notoriedade internacional graças a seus 65 anos dedicados à pesquisa sobre o comportamento dos chimpanzés em Gombe, na Tanzânia. Ainda muito jovem e sem treinamento científico extensivo, Jane mudou-se para a África para acompanhar o cotidiano de um grupo de chimpanzés. Foi apenas graças à falta de viéses acadêmicos, que muitas vezes nublam a percepção de pesquisadores veteranos, que Jane pôde enxergar nos chimpanzés de Gombe inúmeras semelhanças com a nossa própria espécie. Suas observações iniciais demonstraram que chimpanzés brincam, passam por uma fase similar à adolescência, matam seus semelhantes em guerras entre bandos, mas têm uma elaborada rede de colaboração social também.

 

Por ser mulher e jovem, outros cientistas zombaram dela ao perceberem que atribuía aos animais que observava qualidades tidas como exclusivamente humanas e por dar a eles nomes próprios, como Flo e Goblim. Por ser corajosa, trocou o conforto de Londres pelas selvas africanas, apesar de ser mulher e jovem na Inglaterra dos anos de 1960. Jane levou a cabo o mais longevo projeto de observação animal em campo até hoje, inspirando projetos similares em diversos outros locais e com diferentes espécies. Sua intuição revolucionou a forma como o comportamento animal é estudado no campo e compreendido na teoria.

 

Essa é a disciplina que mais gosto de lecionar na universidade, e hoje me peguei pensando em quantas das minhas aulas foram transformadas por Jane Goodall.

 

A guinada na carreira de Jane Goodall, que deixou as pesquisas sobre os chimpanzés em segundo plano para se dedicar à conservação, só foi aparente. Cada dia de convívio com esses grandes macacos mostrou a ela, e a todos os que leram seus trabalhos, como não nos distanciamos tanto assim uns dos outros.

 

Jane deixou claro que não faz sentido estudar a vida selvagem sem defendê-la. Ela usou uma linguagem sedutora, uma narrativa imersiva em primeira pessoa e uma tonelada de casos deliciosos para levar seus leitores para a selva de Gombe numa viagem da imaginação. Nessas histórias, cada personagem era tão humano, tão real, que não apoiar esforços pela sua conservação seria imoral.

 

Seus esforços rodando o planeta para divulgar o instituto que leva seu nome renderam resultados. Diversas iniciativas inspiradoras voltadas para envolver crianças, especialmente meninas, na construção de um mundo melhor foram agregadas ao programa Roots & Shoots (Raízes e Brotos), criado para promover mudanças positivas a partir das iniciativas e ações das próprias crianças.

 

Mesmo em meio a tantas atrocidades contra o meio ambiente e contra os animais, mesmo com mais de 90 anos, Jane Goodall era uma voz cheia de energia e esperançosa, ainda que lúcida, em defesa da natureza e do direito dos animais. Suas contribuições teóricas no comportamento animal nos mostraram que nossas qualidades em relação aos animais são mais uma questão de escala do que uma particularidade humana sem equivalente no mundo animal. Suas contribuições morais ainda irão ecoar por muito tempo, até que nos tornemos um mundo mais parecido com o que ela desejava alcançar.

 

Publicado originalmente, em 02 de outubro, no portal Correio Braziliense.

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