OPINIÃO

Gabriel Dorfman é professor do Departamento de História da Arquitetura e do Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Doutor em Arquitetura pela Technische Universität Berlin.

Gabriel Dorfman

 

A necessidade de ampliar e aprofundar cada vez mais a “inclusão digital” no Brasil é um dos mais batidos slogans atuais. Frente a chavão tão difundido e bovinamente aceito, cabe uma pergunta: a quem (e ao quê) tem servido a informatização da vida que tem engolfado o Brasil nas últimas décadas? Ou, por outras: a vida da maioria dos brasileiros tem melhorado significativamente, graças à informatização que invade todas suas instâncias, à revelia de sua vontade?

 

A pergunta não é retórica, a dúvida é procedente. Eis alguns argumentos a seu favor:

1. Alega-se que a informatização tem sido fator de “democratização” dos procedimentos burocráticos que a maioria dos brasileiros está condenada a suportar. Se isso for verdade, o que dizer, então, do fato de que a quase total extinção dos agentes de Estado de carne e osso tem privado centenas de milhões de pessoas da possibilidade de sequer registrar uma reclamação face à inoperância do Estado? Até que ponto as gravações e os “algoritmos” acessíveis apenas por celular têm, de fato, mantido abertos canais de comunicação que deem aos cidadãos comuns a chance de se defender da ineficiência e da prepotência desse mesmo Estado?

2. Em que medida rotinas complexas, difíceis até mesmo para pessoas com bom nível de instrução, podem de fato estar “democratizando” o acesso às instâncias de poder e decisão por parte das dezenas de milhões de analfabetos que povoam o país? Quem está zelando pelos interesses dessa multidão em meio à barafunda de algoritmos e rotinas que (democraticamente) infernizam a vida de TODOS?

3. Sobre a recorrente alegação de que os sistemas informatizados ajudam a coibir a corrupção: como explicar, então, as fraudes de BILHÕES de reais que teimam em ocupar boa parte dos noticiários, dia após dia? Como explicar a total impunidade com que predadores estão permanentemente à espreita de novas vítimas no universo digital, tal como as hienas e os grandes felinos vivem tranquilamente a lobrigar suas presas (via de regra as mais fracas e vulneráveis) nas margens de rios e pastagens das savanas africanas?

 

Diante das questões recém expostas, pergunta-se: não estará a digitalização da vida apenas repondo com técnicas de vanguarda, em nome de uma suposta inexorabilidade do “progresso”, a velha lei de “todos contra todos”? Não estará ela recolocando no mundo da cultura o lado mais perverso das leis que regulam o mundo da natureza? E, se essa hipótese tiver algum fundo de verdade: a quem está servindo esse “progresso”, do qual ninguém tem o direito de escapar?

 

Em tempo: a possibilidade de retroagir no tempo, ou de sequer desacelerar o assim chamado “processo histórico” (a quem beneficia esse “processo”?), só existe na imaginação dos delirantes. No entanto: mesmo partindo da premissa de que não há como desfazer o que já está feito, não restará ainda a possibilidade de que as pessoas comuns possam conquistar o direito de ESCOLHER as ferramentas digitais (e as engenhocas) que querem usar? Que elas possam vez por outra dizer NÃO a alguma “atualização” ou a algum “aplicativo” que lhes estejam sendo IMPINGIDOS pelo Estado e/ou por alguma gigantesca corporação? Que lhes seja concedido o DIREITO de simplesmente RECUSAR algum recurso de última geração, independentemente das promessas de facilidade e/ou de felicidade nele embutidas?

 

É esta a ideia exposta neste breve artigo: partindo da premissa de que é parte essencial da liberdade dos indivíduos o direito de ESCOLHER as ferramentas com que vão enfrentar o mundo, então, eles de fato estão sendo OPRIMIDOS, cada vez em que alguma ferramenta se lhes é IMPOSTA por forças superiores a eles, independentemente de sua vontade.

 

Por fim: partindo da premissa de que nada do que ocorre no mundo da cultura ocorre pela ação de entidades sobrenaturais, e que tanto o Estado quanto as grandes corporações são instituições humanas, então, são (alguns) bípedes racionais, feitos de carne e osso, os beneficiários da opressão que governa o universo digital.

 

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