OPINIÃO

Rose May Carneiro é professora, fotógrafa, cineasta e pesquisadora do curso de Audiovisuais da Faculdade de Comunicação da UnB. Coordenadora de extensão da FAC e do projeto Cine Pipoca no Rolê, um cinema itinerante com o foco nos Direitos Humanos (@cine.pipocanorole). Integra os grupos de pesquisa (CNPQ) Gênero e Comunicação (@gecoms) e Narrativas e Experimentações Visuais.

Rose May Carneiro

 

Abre os olhos e imagina: oito de julho de mil oitocentos e noventa e seis, Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro. A noite exala maresia, a luz treme na tela improvisada e, de repente, a cidade vê o futuro passar na velocidade de um trem inventado na França. Dois anos depois, Afonso Segreto aponta a câmera para a Baía de Guanabara e conquista um pedaço de eternidade. Daquele lampejo inaugural até aqui, cento e vinte e nove anos se transformam em estrada longa, cheia de aclives, buracos, miragens e celebrações.

Nessa estrada cabe de tudo. Pequenos documentários que guardam rostos anônimos, chanchadas cheias de riso e música, a figura luminosa de Carmen Miranda dançando para o mundo. Depois, o Cinema Novo grita fome e revolta, o Cinema Marginal rasga a censura com tesoura afiada. Hoje, as salas escuras espalham-se na mesma terra onde ainda falta pão e teto, mas as imagens circulam como se carregassem baterias invisíveis. O país vive uma maré de visibilidade, prêmios lá fora, conversas acaloradas aqui dentro, telas de LED em toda parte.

Olha de novo, com atenção, e percebe as mulheres. Carmen Santos filma O Mistério do Dominó Preto em mil novecentos e trinta e um e prova que não há porta fechada capaz de segurar desejo. Adélia Sampaio assina Amor Maldito em mil novecentos e oitenta e quatro, primeira diretora negra neste território amplo e contraditório. De lá para cá, Anna Muylaert, Laís Bodanzky, Tata Amaral, Viviane Ferreira, Sabrina Fidalgo, Petra Costa. Cada nome, uma bússola que desafia fronteiras, orçamentos curtos, olhares desconfiados, críticas apressadas. As obras assinadas por elas somam pouco mais de um quinto dos lançamentos por ano, mas respondem por quase quarenta por cento da bilheteria nacional. A matemática insiste em sussurrar: deem espaço.

O momento político abraça essa causa. A Política Nacional Aldir Blanc, conhecida como PNAB, injeta recursos diretos em estados e municípios, cria editais com recortes de gênero e raça, reserva linhas de crédito para quem sempre ficou na borda do balcão. Ao lado do Fundo Setorial do Audiovisual, a PNAB funciona como respirador que devolve fôlego a roteiros, oficinas, laboratórios, cineclubes e circuitos itinerantes. Sem ela, muitos rostos que brilham em festivais jamais chegariam ao primeiro dia de filmagem.

Mesmo com três mil quinhentas e nove salas, a geografia ainda castiga: mais de cinco mil cidades brasileiras vivem sem um único cinema. Noventa milhões de habitantes veem seus sonhos refletidos apenas no espelho ou na tela do celular. A PNAB promete pontes: vans carregadas de projetor, praças viradas em arena, escolas que viram sala de exibição depois da aula.

É nesse vórtice que a Universidade de Brasília estuda, discute e reinventa o audiovisual. Professores mergulham em arquivos, alunos testam drones e roteiros afiados, pesquisadores ajudam a medir o impacto dos editais. Das salas de aula saem curadorias, festivais universitários, rodas de conversa que aproximam periferias, quilombos, aldeias. O saber acadêmico abraça a prática e descobre novas formas de circular afeto.

Celebrar cento e vinte e nove anos de cinema brasileiro é acender vela para quem teve coragem de filmar a infância, a pobreza, a utopia. É apontar falhas e pedir pontes. É cuidar das histórias que ainda dormem dentro de câmeras sem bateria. Mais que tudo, é convidar cada estudante a ocupar a tela, a acreditar na própria voz, a fazer do escuro do cinema um território onde o Brasil se reconhece e imagina saídas. Porque a luz que corta a sala não termina no último fotograma: ela escapa pela porta, atravessa a rua, entra na vida e a transforma em coisa viva.

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