Kleber Aparecido da Silva
"(...) Letrar é mais que alfabetizar, é ensinar a ler e escrever dentro de um contexto onde a escrita e a leitura tenham sentido e façam parte da vida do aluno”. Magda Soares
Pesquisas realizadas na área da Educação (Crítica), Pedagogia e Linguística Aplicada (Crítica) atestam que um dos grandes problemas sociais no Brasil é o analfabetismo. Este mal radicado na sociedade brasileira praticamente é tão antigo quanto o próprio país, e infenso às diversas campanhas de alfabetização que surgem no bojo de políticas educacionais. Neste contexto, este artigo visa trazer à baila reflexões críticas acerca das contribuições dos estudos da linguagem e da educação visando à (re)construção de uma política de alfabetização e de multiletramentos, alicerçada em paradigmas críticos e/ou decoloniais.
O caráter perverso e persistente do analfabetismo brasileiro situa-se numa matriz sócio-histórica e tem como uma das suas bases a ecologia sociolinguística da comunidade de fala brasileira. Para isso, é necessário levarmos em consideração informações censitárias que dão conta das dimensões e características deste problema no contexto. Renato Casagrande, presidente do Instituto Casagrande e referência em práticas educativas inovadoras e no desenvolvimento de Instituições de Educação Básica e Superior, no seu artigo intitulado O Brasil e o labirinto do analfabetismo funcional: diagnóstico e urgências, publicado no Jornal Correio Braziliense, em 11 de maio de 2025, afirma que o “Brasil continua preso a dados alarmantes: 29% da população entre 15 e 64 anos é considerada analfabeta funcional. Isso significa que, embora saibam ler palavras e frases simples, essas pessoas não conseguem interpretar textos mais complexos, compreender instruções básicas ou realizar operações matemáticas elementares. Trata-se de uma alfabetização incompleta, que limita o exercício da cidadania, o acesso ao trabalho digno e o desenvolvimento do pensamento crítico”.
Este dado, divulgado pela edição mais recente do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf, 2025), está estagnado desde 2018, revelando o colapso silencioso da educação brasileira. Essa realidade é resultado de fatores estruturais que exigem enfrentamento com seriedade, planejamento e proposições políticas. Entre as principais causas estão, segundo Renato Casagrande (2025), “(...) a baixa qualidade do ensino — evidenciada pelo Saeb (2023), que mostra que a maioria dos alunos do ensino médio não atinge o nível adequado em língua portuguesa — e a evasão escolar. Segundo o IBGE (2022), 9,1 milhões de brasileiros abandonaram a escola antes de concluir a educação básica. Entre os jovens de 15 a 17 anos que deixaram de estudar, mais da metade sequer completou o ensino fundamental. A escola não tem conseguido reter nem motivar seus estudantes”.
A essa realidade se soma a falta de bibliotecas — presentes em apenas 30% das escolas públicas —, fator essencial para o desenvolvimento de práticas de alfabetização e/ou eventos de multiletramentos. Além disso, a desigualdade social agrava o problema: crianças negras, pobres e do Norte e Nordeste têm menos acesso à educação de qualidade. Enquanto no Sudeste a taxa de escolarização de crianças entre 4 e 5 anos é de 94,5%, no Norte esse número cai para 86,5%.
Segundo Casagrande (2025), a “exclusão digital também é um obstáculo: 22,4 milhões de brasileiros ainda não têm acesso à internet, o que compromete o acompanhamento escolar e o acesso ao conhecimento. Some-se a isso a crise no magistério. Apenas 59% dos professores têm formação adequada para a área em que atuam. Muitos enfrentam esgotamento mental, desvalorização, pressões ideológicas e insegurança nas escolas. O resultado é uma profissão em crise, que atrai cada vez menos jovens: segundo a Fundação Carlos Chagas (2023), menos de 2% dos jovens brasileiros desejam ser professores”.
O enfrentamento desse cenário exige, a meu ver, recolocar a alfabetização como prioridade nacional, ou seja, a alfabetização tem que fazer de um projeto transdisciplinar de educação de base no Brasil. Para tal intento, é necessário, a meu ver, a (re)construção de projeto educacional que: i) invista na formação inicial e continuada dos/as professores/a; ii) garanta bibliotecas e mediadores de leitura nas escolar; iii) revise os currículos com foco em competências linguísticas e matemáticas – pedagogia da alfabetização/letramento e pedagogia dos multiletramentos; iv) adote políticas que garantam a permanência dos alunos na escola com propósito e pertencimento.
É urgente, segundo Paula Cobucci e Veruska Ribeiro, (trans)formadoras de professores/as da Universidade de Brasília e do Instituto Federal de Brasília e referências na área de alfabetização/letramentos no Brasil, no seu livro intitulado Educação Linguística para Jovens e Adultos, e publicado pela Editora Contexto em 2023, fortalecer a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e criar programas de alfabetização digital que assegurem o acesso e o uso crítico das tecnologias. As autoras defendem que a educação linguística para esse público deve ser um processo inclusivo, que (re)integre conhecimentos, gêneros textuais e práticas significativas. Para isto, é necessário o enfrentamento das desigualdades regionais com políticas públicas específicas, com maior presença do Estado na elaboração, desenvolvimento e implementação de políticas educacionais.
O analfabetismo funcional é o porta retrato de um país que fracassou em garantir o direito de aprender, mas esse fracasso não pode ser naturalizado. Com compromisso, coragem e agentividade, é possível mudar esse quadro e garantir que todos tenham acesso à palavra, à leitura e à compreensão — bases de uma democracia real. A frase de Darcy Ribeiro “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é projeto”, sintetiza a filosofia de governos que nos assolam desde o golpe do impeachment: a dita crise, criada de fora para dentro, é um projeto de desconstrução, com início, meio e fim, que percorre todos os vãos da vida nacional, mas se concentra na inviabilização do futuro do país, cortando de vez as possibilidades de retomada do desenvolvimento, pois todas elas dependem de ensino, pesquisa, extensão, inovação e internacionalização.
Em síntese, para superarmos a crise educacional em que estamos imersos e instaurados já por muitos anos, é preciso um projeto de educação que resgate e que vivencie praxiologias na/fora da escola, e que reflitam/refratem os preceitos linguísticos, culturais e políticos de Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Paulo Freire, Stella Maris Bortoni-Ricardo e Magda Soares. Quando isto for feito, (re)colocaremos a educação no lugar que deveria estar no contexto brasileiro: como um projeto prioritário no Brasil, que pode ter os seus “dilemas”, mas que tem grande “potencialidade”, pois o Brasil que eu quero é o Brasil que lê criticamente, e que compreenda que é por meio das práticas que envolvem a leitura e crítica é que poderemos (re)constituir uma identidade e um protagonismo brasileiro mais crítico, reflexivo e emancipatório. E que possamos no bojo de políticas educacionais substituir da nossa estante o porta retrato do “Analfabetismo Funcional” pelo porta retrato dos “Multiletramentos Digitais”. Pense nisto!.