OPINIÃO

Maria Lúcia Pinto Leal é professora emérita da Universidade de Brasília. Fundadora e coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Violência, Tráfico e Exploração Sexual de Crianças, Adolescentes e Mulheres - Violes/SER/UnB.

 

 

Maria Lúcia Pinto Leal

 

Meninas de 9 a 14 anos de idade da Comunidade Quilombola Kalunga, localizada no território dos municípios de Monte Alegre de Goiás, Cavalcante e Teresina de Goiás, são amarradas e torturadas, sendo transformadas em empregadas domésticas e escrava sexuais de seus patrões (ibdfam.org.br/no - 2015)

 

Os [garimpeiros] dizem: ‘Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!’. Então, os Yanomami respondem: ‘É minha filha!’. Quando falam assim, os garimpeiros apalpam as moças. Somente depois de apalpar é que dão um pouco de comida. Relatório Yanomami (Hutukara, 2022)

 

A questão da violência sexual de crianças e adolescentes tem suas determinações nas desigualdades sociais e de gênero, étnico racial, na falta de equidade, no racismo estrutural, no empobrecimento e nas alterações climáticas, impactando no bem viver das populações dos territórios indígenas, comunidades tradicionais, rurais e urbanas. De acordo com a Constituição de 1988, art. 227, “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (BRASIL, 2015). No § 4.º, diz que a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual de crianças e adolescentes.

 

Nesta perspectiva, a Lei nº 9.970, de 17 de maio de 2000, estabeleceu o 18 de maio como o “Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil”. A escolha da data foi inspirada no assassinato de Araceli Cabrera Sánchez Crespo, uma menina de 8 anos, vítima acometida de um crime bárbaro, em 18 de maio de 1973. Até hoje impune!

 

O mês de maio tornou-se, portanto, uma referência para o enfrentamento a violência sexual contra crianças e adolescentes, em que os atores da rede de proteção devem promover atividades de mobilização, visando combater a violência sexual contra crianças e adolescentes. É o momento em que as instituições devem prestar contas das ações que realizam e traçar estratégias que possam ser desenvolvidas ao longo do ano, demonstrando por meio de dados estatísticos, como veem trabalhando esse enfrentamento, para que as informações possam subsidiar a elaboração de políticas públicas para aprimoramento dos serviços e indicadores sociais.

 

Conforme os dados atuais do Disque 100, houve um crescimento nas denúncias de violência contra crianças e adolescentes, entre 2020 e 2024, passando de 75.535 denúncias em 2020 para 274.948 em 2024, o que representa um aumento de 264%. O maior salto ocorreu entre 2020 e 2021 (+74%) e entre 2022 e 2023 (+47%). A análise também aponta que crianças entre 5 e 14 anos concentram a maior parte das denúncias, refletindo sua maior exposição e capacidade de verbalização dos abusos sofridos. Visibilizando casos de violência sexual contra crianças dos povos originários e tradicionais, entre 2020 e 2022, foram documentados 39 casos de violência sexual contra crianças indígenas, com significativa subnotificação, considerando que 29,95% do total da população indígena no Brasil está na faixa etária de 0 a 14 anos, e que nas comunidades o percentual de crianças e adolescentes indígenas entre 0 a14 anos, chega a 40,54%. (Opoinfancias, 2024).

 

Dados globais do Relatório “Avaliação da Ameaça Global 2023” do WeProtect Global Alliance, de 2023, mostram que crianças e adolescentes de grupos minoritários ou marginalizados, com base na sua orientação sexual, raça, etnia, deficiência e pelas alterações climáticas, estão mais expostos a danos sexuais online. (WeProtect, 2023).

 

▪ aumento de 360% em termos de imagens de cariz sexual "autogeradas" de menores de idade com 7 e 10 anos de 2020 a 2022;

▪ 60% dos casos de abuso online envolviam o autor do crime, que era provavelmente alguém que o menor de idade conhecia;

▪ 54% dos inquiridos a nível mundial foram alvo de danos sexuais online na infância.

 

Esses dados demonstram um crescimento real da violência sexual, no Brasil, de crianças e adolescentes, na sua diversidade cultural, social e territorial, o que evidencia a fragilidade das ações do Estado e da sociedade para enfrentar o abuso e a exploração sexual, nas suas formas mais tradicionais, e com novas configurações, pois quem sofre essas violências não pode esperar. Nesta perspectiva, será necessário impulsionar a governança nacional e local para viabilizar, concretizar e potencializar a Política de Atendimento descentralizada para os territórios, a fim de colocar em prática os planos, protocolos e resoluções que orientam a atenção integrada das políticas públicas pelo Sistema de Garantia da Direitos (SGD).

 

O Artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) trata da política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente, que deve ser implementada, de forma articulada e conjunta, por ações governamentais e não governamentais, em todos os níveis da federação. A política deve garantir a proteção integral da criança e do adolescente.

 

Os desafios no enfrentamento da violência sexual são complexos, porém algumas ações de mitigação têm sido implementadas, como, por exemplo: a criação do Disque 100 para realizar a notificação das violências, embora ainda muito subnotificado; dar visibilidade à questão da violência sexual e subsidiar o atendimento dos profissionais, que atuam no Sistema de Garantia de Direitos (SGD), junto às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual nos territórios brasileiros. Destacamos, também, a importância das resoluções que dispõem sobre a temática para o enfrentamento da violência sexual contra criança e adolescentes tais como: a) a resolução da Lei da Escuta Protegida 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, com foco em proteger a integridade da criança ou adolescente durante processos de investigação e julgamento; b) a 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que estabelece um protocolo específico para atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, incluindo a garantia da interrupção legal da gravidez quando decorrente de estupro; c) a 181/2016 do Conanda, art. 3, que estabelece parâmetros de adequação do Sistema de Garantia de Direitos para que se constitua em serviço culturalmente adequado as crianças dos Povos Indígenas e das Comunidades Tradicionais e suas Infâncias.

 

Existem outras questões que também precisam ser levadas em consideração para mitigar a situação da violência sexual contra crianças e adolescentes, como: a) integrar os dados do Disque 100 com outras fontes de dados para subsidiar o SGD no enfrentamento da violência sexual; b) potencializar a participação/protagonismo de adolescentes e jovens na sua diversidade e pluralidade em espaços coletivos de mobilização; c) desenvolver campanhas permanentes para enfrentar o racismo estrutural e combater a violência sexual; d) enfrentar a violência sexual nas redes e mídias sociais, e o uso dessas como um espaço de comunicação e interação social, visando a prevenção contra essas violências; e) promover novas formas de abordagens e inclusão social das crianças e jovens dos territórios indígenas, comunidades tradicionais e migrantes; f) pautar a defesa dos direitos sociais e climáticos das infâncias e juventudes nos encontros nacionais e na COP 30, em Belém do Pará, 2025.

 

Para finalizar, é importante ressaltar o papel desempenhado pela Universidade de Brasília (UnB), em parceria com a sociedade, poder público e outros saberes, no enfrentamento da temática – Violência Sexual –, por meio de estudos, pesquisas e formações, desenvolvidos por seus grupos, centros de estudo e núcleos de pesquisas.

 

Nesta direção, vale salientar a importância das pesquisas realizadas pelo Grupo Violes/SER, pelo Opoinfâncias/Ceam sobre os povos originários e suas infâncias, os cursos de formação realizados sobre a questão étnico racial – Neij/CEAM e ENDICA, e as disciplinas sobre infância e juventude, disseminadas por vários cursos de graduação e pós-graduação da UnB , como por exemplo, o Mestrado Profissional sobre Políticas Públicas e Infância e Juventude/CEAM voltado para formação intersetorial, interseccional e intercultural.

 

Proteja uma criança, denuncie, Disque 100. 

 

  

 

Veja a programação da Semana Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (19 a 22 de maio).

 

 





 

ATENÇÃO – O conteúdo dos artigos é de responsabilidade do autor, expressa sua opinião sobre assuntos atuais e não representa a visão da Universidade de Brasília. As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seu conteúdo.