Kleber Aparecido da Silva
Inglês como língua materna, estrangeira, franca, adicional, mundial, global, multinacional, transnacional, internacional – como designar o inglês, usado por milhões de pessoas ao redor do mundo com os mais diferentes propósitos e que hoje se revela não só um produto cultural, mas principalmente econômico, social e (a)político?. Que “inglês” é este falado por Fernanda Torres no momento que ela foi agraciada como o prêmio Globo de Ouro de melhor atriz na Categoria Drama no Globo de Ouro? E que “inglês” é este que foi imposto por meio de um decreto presencial por Donald Trump para ser esta língua seja oficial dos Estados Unidos?.
A Sociedade de Linguística da América (LSA), e acredito que muitos linguistas e linguistas aplicados do Sul Global, se opõe, fortemente, à Ordem Executiva da Casa Branca de 1º de março de 2025, “Designando o inglês como a língua oficial dos Estados Unidos”. Abaixo, listamos quatro das justificativas dadas na Ordem Executiva em apoio ao inglês oficial e explicamos por que elas não são válidas — e, em muitos casos, até mesmo prejudicam os objetivos declarados da ordem.
Declaração nº 1: Desde a fundação da República dos Estados Unidos, o inglês tem sido usado como língua nacional. Os documentos históricos de governo, incluindo a Declaração de Independência e a Constituição, foram todos escritos em inglês.
Ao contrário da crença popular, os Estados Unidos não são e nunca foram um país monolíngue. Um em cada cinco residentes dos EUA em 2019 relatou ter uma origem linguística diferente do inglês, e essa diversidade não é nenhuma novidade. Como Crawford (1990) observa, em 1664, quando os britânicos assumiram o controle da colônia de New Netherland, a Ilha de Manhattan era o lar de falantes de 18 línguas diferentes de imigrantes e várias línguas nativas americanas. Hoje, a cidade de New York, com suas 800 línguas, é (re)conhecida como a cidade com maior diversidade linguística do mundo.
A legislação oficial de idiomas/línguas em nível federal foi proposta ao Congresso várias vezes na história dos EUA a partir de 1981, mas nunca foi aprovada em ambas as casas (Crawford, 2013). Os Pais Fundadores escolheram não formalizar um vínculo entre a língua e a identidade estadunidense. Notavelmente, sua única declaração oficial sobre a linguagem, expressa na primeira emenda à Constituição foi: "O Congresso não fará nenhuma lei restringindo a liberdade de expressão..." Este direito não é limitado na Declaração de Direitos a nenhuma língua em particular.
Sabemos por seus escritos que os primeiros líderes como Thomas Jefferson se orgulhavam de seu multilinguismo e incentivavam os cidadãos educados a estudar línguas também. Havia uma população de língua alemã tão considerável na época da Revolução Americana (9% da população (Ferguson & Heath, 1981)) que, para ratificar a Constituição em 1787 e 1788, estados como Pensilvânia e New York traduziram e distribuíram cópias em alemão e holandês para garantir debate e participação suficientes. Em outras palavras, os Estados Unidos têm sido o lar de uma diversidade linguística significativa desde seu início (Crawford 1990; Wiley & Wright 2004). O inglês, portanto, não tem uma posição histórica especial que justifique consagrá-lo como a única língua "oficial" dos Estados Unidos.
Declaração nº 2: Uma língua designada nacionalmente é o cerne de uma sociedade unificada e coesa, e os Estados Unidos são fortalecidos por uma cidadania que pode trocar ideias livremente em uma língua compartilhada.
A Ordem Executiva promove uma crença falsa e excludente de que uma nação deve ter uma língua oficial para ser unificada. Embora as nações tenham frequentemente tentado usar a língua para impor uma identidade cívica ou nacional comum, na verdade os cidadãos das democracias inevitavelmente têm diferentes formas linguísticas de navegar suas vidas.
Mais de 80% dos países do mundo são oficialmente bilíngues ou mul/translíngues. Em muitos deles, as línguas minoritárias nativas de um país ou território (por exemplo, gaélico escocês e galês no Reino Unido) são incluídas na política de línguas oficiais. No Canadá, tanto o inglês quanto o francês são línguas oficiais, e várias línguas indígenas (incluindo chipewyan e cree) são protegidas para uso como línguas de instrução. Na África do Sul, 11 línguas oficiais são legisladas, incluindo inglês, africâner, zulu, xhosa e outras, sob um modelo de multilinguismo de “língua materna”. O reconhecimento da presença e das contribuições de grupos historicamente importantes fornece outros modelos para a política nacional de língua oficial em todo o mundo.
Além disso, há pesquisas documentando como impor uma língua comum pode realmente gerar resistência intensa, em vez de criar uma sociedade "unificada e coesa". Isso ocorre em parte porque configura recursos econômicos para fluir desproporcionalmente em favor da língua oficial. Além disso, como Grillo (1989) aponta, as línguas dominantes são produtos dos grupos dominantes, cujos padrões passam a ser vistos como universais, naturais e autoevidentes. Sobre essa questão, acadêmicos como Rosa e Flores (2017) observam que a natureza interligada da língua e da raça cria uma hierarquia linguística na qual as línguas e os repertórios linguísticos de falantes não brancos são considerados deficientes. A imposição desse tipo de hierarquia linguística só pode ser divisiva.
Declaração nº 3: Falar inglês não só abre portas economicamente, mas também ajuda os recém-chegados a se envolverem em suas comunidades, participarem de tradições nacionais e retribuírem à nossa sociedade.
A maioria das pessoas nos EUA já fala inglês, e os moradores que ainda não falam desejam aprender. No último Censo dos EUA, o inglês continua sendo a língua mais comum falada em casa nos Estados Unidos, com 78% dos entrevistados falando apenas inglês. Além disso, muitos estudos revelaram que não apenas a maioria dos imigrantes já dá grande valor ao aprendizado do inglês, como os filhos de imigrantes aprendem inglês universalmente nas escolas e em suas comunidades. Muitos estadunidenses de segunda geração se identificam com a experiência do inglês sendo enfatizado em casa, por seus pais e cuidadores. É muito comum que o uso do inglês seja priorizado em relação ao uso de línguas de herança em casa. Tornar o inglês obrigatório como língua oficial é uma solução para um problema que não existe: não há evidências sugerindo que o inglês esteja ameaçado.
Em vez disso, o transbordamento ideológico do "inglês oficial" provavelmente será pernicioso. A linguagem será cada vez mais usada como fonte de controle social, político e econômico. Os esforços de planejamento linguístico estratificarão a sociedade ainda mais do que já é. Oficializar o inglês encorajará o English Only Movement em seus esforços para eliminar programas bi/translíngues, um movimento que colocará as crianças que falam outra língua em casa de volta em seu desenvolvimento cognitivo, não “abrirá portas economicamente”. Também ressaltará e legalizará as conexões entre “inglês padrão” e mobilidade ascendente, conexões que há muito tempo se mostraram prejudiciais aos falantes de inglês “não padrão” (Baugh, 2003). Portanto, não “ajuda os recém-chegados” a tornar o inglês oficial; em vez disso, é provável que os marginalize e estigmatize.
Sendo assim, ecoo um apelo da LSA à ação: uma sociedade multilíngue, não monolíngue! Quando esta Ordem Executiva é vista em conjunto com outras Ordens Executivas recentes, incluindo a Ordem Executiva de 20 de janeiro de 2025, “Protegendo o Povo Americano Contra Invasão”, ela parece projetada a serviço de objetivos anti-imigrantes mais amplos, incluindo o apagamento da história e da cultura de milhões de pessoas nos Estados Unidos que não são falantes monolíngues de inglês. Tentativas anteriores de criar uma única língua oficial para os Estados Unidos foram todas rejeitadas. Perguntamos: se os Estados Unidos não precisam de uma língua oficial há mais de 200 anos, por que precisaríamos de uma agora?
A LSA e seus membros se posicionam firmemente contra a Ordem Executiva de 1º de março, e apelamos a qualquer pessoa preocupada com as falácias e a retórica excludente encontradas na Ordem Executiva de 1º de março para continuar a apoiar, proteger e promover o multilinguismo e a translinguagem; e a diversidade linguística nos Estados Unidos da(s) América(s).
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Referências
Crawford, J. (2013). Language and Legislation in the US. http://www.languagepolicy.net/archives/langleg.htm
Crawford, J. (1990). Language freedom and restriction: A historical approach to the official language controversy. In J. Reyhner (Ed.), Effective language education practices and native language survival (pp. 9–22). Native American Language Issues.
Ferguson, C. and Heath, S. B. (1981). (eds). Language in the USA. Cambridge: Cambridge University Press.
Grillo, R. D. (1989). Dominant languages: Language and hierarchy in Britain and France. Cambridge University Press.
Rosa, J., & Flores, N. (2017). Unsettling race and language: Toward a raciolinguistic Perspective. Language in Society, 46(5), 621–647. https://doi.org/10.1017/S0047404517000562
Wiley, T., & Wright, W. (2004). Against the undertow: Language minority education policy and politics in the ‘age of accountability.’ Educational Policy, 18(1), 142-168. https://doi.org/10.1177/0895904803260030
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