OPINIÃO

 

Regina Coelly Fernandes Saraiva é professora da Faculdade UnB Planaltina. Integrante da pesquisa “Massacres no campo na Nova República: crime e impunidade, 1985-2018”, coordenada pelo Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde 2020.

Regina Coelly Fernandes Saraiva

 

“Acorda! Acorda! Acorda, ajunta e deita no chão que o ataque já vem.” Assim João Peres registra no livro Corumbiara, caso enterrado a fala de um camponês no momento do massacre de Corumbiara (Rondônia, 1995) que resultou, só no momento do ataque, no assassinato de nove camponeses. Entre as vítimas mulheres, uma criança e jovens.

 

Em 17 de abril, lembramos o Dia Internacional de Luta dos Trabalhadores do Campo ou o Dia da Luta Camponesa. Não podemos esquecer que o dia nasceu de lutas e vitórias, mas também de muitas dores para os camponeses. A data faz referência ao massacre de Eldorado do Carajás, ocorrido no Pará (Eldorado do Carajás, 1996). Naquele fatídico dia, 21 sem-terras foram assassinados pela polícia militar do Pará, em um ato de violência do Estado contra camponeses em luta por terra e reforma agrária.

 

A tensão social e conflitos agrários que culminaram nos casos de Eldorado do Carajás, Corumbiara e tantos outros são remanescentes da política de favorecimento de terras promovida pela ditadura civil-militar (1964-1985) para latifundiários-empresários interessados na exploração e lucros com a terra. O período pós-ditadura, portanto de redemocratização do país, é marcado por resquícios dos governos autoritários que não tinham intenção de resolver problemas estruturais, como a questão da terra. Ao contrário, deixaram um legado de muita violência no campo.

 

De 1985 a 2021 foram computados 59 massacres no campo. Casos emblémáticos de histórias de terror, medo, sofrimento e impunidade. São considerados massacres aqueles casos nos quais um número igual ou maior que três pessoas são mortas na mesma data e em uma mesma localidade, em ocorrência de conflitos pela terra. O conceito é da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que sistematiza os conflitos e massacres no campo desde 1975. É um importante conceito elaborado pelos movimentos sociais do campo a partir de tragédias vivenciadas por camponeses e camponesas na luta pelo direito à terra.

 

Lembrar para não esquecer é parte das comemorações do dia 17 de abril. Marcas da memória do massacre de Eldorado do Carajás estão presentes no monumento da Curva do “S” (BR-155). Não devemos esquecer o ataque ao monumento em homenagem aos camponeses massacrados feito por Oscar Niemeyer em 1996; o ato violento revela como a memória causa pânico entre aqueles que odeiam a luta pela terra. Assentamentos rurais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) receberam nomes de Oziel Alves Pereira, jovem camponês vítima do massacre de Eldorado. Oziel Alves, presente!


Se lembrar é preciso, trago à memória a icônica imagem, divulgada internacionalmente, do massacre do Corumbiara, que representa um ato de tortura coletiva dos camponeses presos no acampamento. João Peres registra: “Os sem-terra são obrigados a deitar no chão. Eles amarram uns aos outros usando cordas. Feito porcos. Chegaram até aqui para ficar feito porco [...] São obrigados a pisar nos companheiros, deitados no chão da pracinha de assembleia. Não pode olhar para os lados, nem para a frente: para o chão. Soco, pontapé, coronhada, tiro.” Assim como Eldorado dos Carajás, o massacre de Corumbiara é emblemático. Em 9 de agosto de 1995, nove camponeses foram assassinados (só no momento do massacre). A motivação do ato brutal foi o conflito de terras em torno da ocupação da Fazenda Santa Elina, em Corumbiara, Rondônia.

 

O ataque foi de madrugada. A polícia militar e jagunços fardados não respeitaram a negociação pacífica da saída da terra. A tensão e a pressão para desocupação da fazenda antecederam o massacre. Fazendeiros locais pressionavam o governo, a polícia e outros agentes políticos para a retirada dos camponeses. O fazendeiro Antenor Duarte do Valle liderou e mobilizou o processo repressivo e violento contra os camponeses. No processo judicial, ele foi indicado como um dos mandantes do massacre, mas foi absolvido. O massacre de Corumbiara foi perverso. A ação violenta prosseguiu em caçadas e perseguição de camponeses na mata: mulheres foram feitas de “escudo humano” para os policiais, tiros para todos os lados, tortura e maus-tratos. Entre as vítimas, uma criança, que morreu no colo da mãe, e uma pessoa não identificada (devido às condições do corpo), que passou a ser denominada como “H05”. O número de vítimas foi subnotificado.

 

O caso do camponês Sérgio Rodrigues Gomes revela o tamanho das atrocidades que cercou o massacre de Corumbiara. Sérgio foi levado numa caminhonete junto com outros camponeses feridos. Ficou dias desaparecido. Seu corpo foi encontrado 15 dias depois em um rio com marcas de tortura. Com milhares de páginas, o processo judicial do massacre é repleto de impunidades. Quem torturou e matou Sérgio não foi devidamente apurado. “H05” nunca foi identificado. Esses e outros horrores, que não podemos esquecer, revelam parte das histórias da violência no campo brasileiro.

 

A luta por reforma agrária é um direito. A garantia desse direito é uma condição fundamental para que a violência estrutural no campo não esteja permanentemente entre nós.

 

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