OPINIÃO

 

Adelaide Paula é doutoranda em Literatura e Práticas Sociais pela UnB, cofundadora e coordenadora do Núcleo de Escritoras Pretas Maria Firmina dos Reis do IL/UnB (NEPFIR/IL/UnB).

Adelaide Paula

 

No dia 8 de março de 2023, dia internacional das mulheres, falar sobre insurgência e proposição é falar de sankofa*, o princípio que nos leva a ser insubmissas no agora, de maneira estratégica, ao tempo que nos projeta para um afrofuturo**, que só será possível se estivermos conectadas com a nossa ancestralidade. Esse movimento pendular nos faz revisitar o passado e, nele, resgatar e pedir benção às nossas mais velhas, apagadas ou invisibilizadas pelo cânone eurocêntrico, que tende a privilegiar apenas uma cosmopercepção da vida. Assumimos, então, a essência ubuntu ao reconhecermos a cada novo dia: somos porque elas foram.  

 

Assim, seguimos de mãos dadas com Sojourner Truth a indagar “E eu não sou uma mulher?”, divergindo de qualquer categorização que  reduza nossos corpos a objeto exótico do fetichismo eurocêntrico. Ou, desafiando a história, como o fez Maria Firmina dos Reis, ao escrever um romance abolicionista em meio à escravidão. Cotidianamente, nos recusando a ceder espaço ao racismo, feito Rosa Parks, exigindo que nosso corpo-território ocupe outros lugares para além do lugar de Outro. Imitando Lélia Gonzales, brigando pelo nosso pretuguês de cada dia,  fazendo os escurecimentos necessários nessa América afro-ladina.   


Carolina Maria de Jesus diria que o livro pode ser um belo espaço para pôr fim às subalternidades que nos são impostas. Confirmando as hipóteses de Spivak e Beatriz Nascimento: sim,  uma subalternizada pode falar! E também pode aquilombar com quem compreende que somos constituídas por questões  de raça, classe e gênero. Conforme disse Ângela Davis, precisamos refletir a partir desses atravessamentos, sobre a manutenção das opressões como um impeditivo para a emancipação de todas as mulheres. Ideia que só reafirma os ensinamentos de Bell Hooks sobre o feminismo negro como um caminho a ser construído, pois “feministas são formadas, não nascem feministas”. E, se aprender é primordial, revelar o epistemicídio, argumentaria Sueli Carneiro, que apaga e invalida processos e saberes de grupos subalternizados, seria nossa missão.


Assim, nossos corpos entrarão no afrofuturo, reafirmando-se como sujeitas, pela sua própria voz e, segundo Djamila Ribeiro, lugar de fala. Esse tempo projetará na terra Brasilis intersecções entre ciências e espiritualidades de matriz africana, ao estilo e potência de  Lu Ain-Zaila e Sandra Meneses. Onde coisas comuns — amar e ser amado — serão a maior urgência. O corpo negro transcenderá, apesar do fetichismo da dor, que tanto Grada Kilomba nos alerta. Afinal, não existiu uma experiência  mais distópica que ser escravizado, objetificado, resistir e reexistir como herói em cinco continentes diferentes. E, neles, ser poliglota de línguas africanas e idiomas colonizadores para reafirmar alteridade. Escrevivendo  novas histórias na mesma pulsão de vida de Conceição Evaristo. Ou, pela poesia, tão lúcida como a de Luciene Nascimento, dissecar no estrutural o racismo como cimento.

 

*O termo Sankofa se traduz no português, ao pé da letra, como “volte e pegue” (san – voltar, retornar; ko – ir; fa – olhar, buscar e pegar), mas pode ser elaborado como “nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás”. Trata-se de uma palavra-provérbio acompanhada de um desenho-símbolo em formato circular, uma forma de oralidade escrita ou de escrita oralizada. Sankofa constitui um elemento do conjunto ideográfico Adinkra.

 

**O Afrofuturismo é um termo que surgiu na década de 90 nos EUA, dentro do campo da ficção científica em um texto da autoria de Mark Dery, no qual esse autor busca entender a ausência de escritores negros e negras nas produções ligadas a ficção científica.

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