OPINIÃO

Cristiano Otávio Paixão Araujo Pinto é professor da Faculdade de Direito da UnB. Subprocurador-Geral do Trabalho. Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Coordena grupos de pesquisa "Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo" e “Eixos, planos, ficções: grupo brasiliense de direito e arte” (CNPq/UnB). Foi Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.

Cristiano Paixão e José Otávio Guimarães

 

O ataque de um grupo organizado à Universidade de Brasília, em 17 de junho de 2016, merece ser levado a sério. E deve ser rejeitada, de plano, qualquer tentativa de considerar o ocorrido como uma ação “isolada”. O ataque foi a materialização de discursos de ódio e intolerância que circulam na sociedade brasileira há alguns anos. Foi também uma tomada de posição contra muitos princípios caros à universidade: a diversidade, a liberdade, a democracia.


Como se pode observar pelas imagens que se disseminam nas redes sociais e na imprensa, os autores do ato incorreram em práticas criminosas: fizeram uso de explosivos, ofenderam indivíduos e grupos, ameaçaram diretamente estudantes, dispararam arma de circulação restrita e multiplicaram mensagens homofóbicas e racistas. Como qualquer cidadão – dentro ou fora da universidade –, eles devem responder por suas ações. A universidade deve repudiar de forma veemente o ocorrido e se empenhar para a manutenção da cultura de liberdade e diversidade que foi construída pela comunidade acadêmica.

 

Para além dessas providências, cabe refletir sobre o significado histórico do ato.


O teor das ofensas e xingamentos proferidos pelo grupo é visivelmente nostálgico. O léxico utilizado remete diretamente aos discursos dos governantes e dos apoiadores do regime militar que se iniciou em 1964 – e que atingiu, de modo particularmente doloroso, a Universidade de Brasília. Há uma preocupação, explícita nas palavras escolhidas pelo grupo, de apontar um certo “defeito moral” nas pessoas que frequentam a UnB. O uso de termos como “parasita” revela a tentativa de desumanização do outro e a autoconsciência de uma certa superioridade, no plano moral, daqueles que agrediram os estudantes.


Era exatamente essa a estratégia do regime militar em sua repressão contra alunos e professores da universidade. Os documentos analisados pela Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB demonstram que os memorandos, informes e fichas de monitoramento da comunidade acadêmica estão repletos de considerações sobre o ambiente de “promiscuidade” e “imoralidade” em que estariam inseridos estudantes, professores e demais frequentadores do campus. Como apurado pela comissão, a UnB foi um alvo direto do regime. Professores foram perseguidos, vigiados e tiveram seus vínculos rompidos com a universidade. Alunos foram presos e severamente torturados, tanto nos prédios das Forças Armadas na Esplanada dos Ministérios como no Pelotão de Investigações Criminais do Exército.

 

Do léxico agressivo e nostálgico de que se serviu o grupo destaca-se igualmente um nome próprio. Nas gravações do ataque, ouvem-se gritos a favor da candidatura de um deputado à presidência da República. Conhecido por já haver feito apologia do estupro e por suas posições homofóbicas, o ex-oficial do Exército, que não se cansa de defender a volta da ditadura militar, ganhou recentemente as manchetes ao dedicar seu voto favorável à admissibilidade do processo de impeachment contra Dilma Rousseff à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Em pleno Congresso, um político presta homenagem a um dos mais conhecidos torturadores do Regime de 64, ex-chefe do temido DOI-Codi. Em rede nacional de televisão, foi feito um elogio ao crime de tortura.


Ao reabilitar práticas autoritárias que não mais deveriam figurar na linguagem política de uma sociedade democrática e civilizada, ao julgar moralmente a comunidade acadêmica, ao proferir ameaças e fazer uso da força de armas e bombas, os perpetradores desses ataques prestam sua homenagem a um período de repressão, autoritarismo, violência e terrorismo de Estado. Para além das responsabilidades individuais – que devem ser apuradas –, cabe fazer uma derradeira questão: como se criou um ambiente para que ocorresse o ataque?

 

A reflexão pode nos ser bem útil. A democracia é o lugar da pluralidade dos discursos, da polifonia das vozes, das ondas de reivindicação na esfera pública. Não foi uma conquista fácil para o Brasil, após 21 anos de regime autoritário. Com uma Constituição cidadã em 1988 e com alternância no poder por meio de eleições com ampla participação e legitimidade, a democracia brasileira parecia consolidada. Até que, desde 2014, setores contrariados com os resultados das eleições presidenciais daquele ano passaram a radicalizar o discurso, mobilizar-se de forma agressiva e estimular um golpe parlamentar que acabou por se concretizar. Além de atingir seus alvos, esses atores políticos e sociais possibilitaram (em muitos casos incentivaram) a criação de núcleos autoritários e violentos na sociedade brasileira. Estão agora colhendo os seus frutos.

 

O que virá a seguir?

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