OPINIÃO

Venício Artur de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação (aposentado) e Emérito da Universidade de Brasília (UnB). É Ph.D. em Communications pela University of Illinois e autor de “Liberdade de Expressão versus Liberdade da Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia”, Publisher Brasil, 2ª. ed., 2012.

Venício Artur de Lima

 

O Dia Mundial da Liberdade da Imprensa, celebrado em 3 de maio, foi criado por decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1993. A intenção é lembrar o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e também a Declaração de Windhoek (Namíbia), firmada pela Unesco, em conjunto com jornalistas africanos, em 1991. O Artigo 19 reza:

 

“Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Já a Declaração de Windhoek, após afirmar o princípio de que uma imprensa independente, pluralista e livre é essencial para a democracia, define esses conceitos: “(2). Por imprensa independente entende-se uma imprensa independente do controle governamental, político ou econômico ou do controle de materiais e infraestrutura essenciais à produção e divulgação de jornais, revistas e periódicos; e (3). Por imprensa pluralista entendemos o fim dos monopólios de qualquer tipo e a existência do maior número possível de jornais, revistas e periódicos que reflitam a mais ampla gama possível de opiniões dentro da comunidade”.

 

Quais são os significados e as implicações dos direitos e princípios celebrados no Dia Mundial da Liberdade da Imprensa?

 

1. O Artigo 19 refere-se a um direito universal do “ser humano” e a Declaração de Windhoek, à “imprensa”. Trata-se, portanto, de instâncias distintas: o direito individual à liberdade de expressão e a defesa da liberdade da pessoa jurídica “imprensa”.

 

2. A liberdade de expressão (isegoria) é muito anterior à liberdade da imprensa. Na Grécia antiga, ao lado da igualdade perante a Lei (isonomia), a isegoria era considerada um dos dois pilares da democracia e compreendia o direito à voz e também o direito de ser ouvido na ágora. Já a liberdade da imprensa implica não só a invenção da máquina de imprimir (Gutenberg, 1450), mas a formação de um público leitor e, por óbvio, o aparecimento de jornais (a palavra newspaper/jornal só é registrada no idioma inglês no final do século XVII).

 

3. O direito à liberdade de expressão fundamenta-se na necessidade de todas e todos expressarem livremente suas opiniões no debate público, o que garantiria a formação de uma opinião pública democrática. Ela, por sua vez, é condição para o exercício da cidadania nas democracias liberais: possibilita a realização de eleições livres e a escolha de representantes legitimados pela vontade “esclarecida” do conjunto da população.

 

4. O surgimento das empresas que publicam e vendem jornais fez com que a circulação de informações e o debate público não ocorressem mais apenas de forma direta (face a face) mas, passassem a ser majoritariamente mediados pela “imprensa”. Estenderam-se, então, para ela, as responsabilidades já atribuídas à liberdade de expressão. Todavia, como diz a Declaração de Windhoek, é condição necessária que a imprensa seja independente, pluralista e livre.

 

5. A Constituição de 1988 garante a liberdade de expressão, observadas algumas qualificações: veda o anonimato; assegura o direito de resposta; declara invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas; e veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Por outro lado, a liberdade de “informação jornalística”, fica sujeita a inexistência, direta ou indiretamente, de monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação (cf. Inciso IX do artigo 5º; Artigo 220, Parágrafos 1º, 2º, 5º e 6º). E o STF firmou jurisprudência no sentido de que “a liberdade de expressão não pode ser usada para a prática de atividades ilícitas ou discursos de ódio, contra a democracia ou contra as instituições” (AP 1.044, 20/4/2022).

 

6. Setores políticos que se identificam com a extrema direita e o conservadorismo têm criticado o que acreditam ser a prática de censura e a ausência de liberdade de expressão no Brasil. Para tanto evocam, comparativamente, o Judiciário dos EUA. É amplamente conhecido aquilo que os constitucionalistas (inclusive os norte-americanos) chamam de American exceptionalism. Desde 1964, a partir do famoso caso New York Times x Sullivan, a Corte Suprema, embora reconheça a existência de limites, passou a tratar a liberdade de expressão – em prejuízo de outros direitos como igualdade, privacidade, reputação e dignidade – com uma amplitude que não encontra paralelo em nenhum outro país do mundo. Ressalte-se que isso não impediu, contraditoriamente, que o governo dos EUA promulgasse uma lei que inviabiliza a plataforma TikTok (chinesa) de continuar operando no país (24/4/2024). O comportamento libertário da Corte Suprema e suas consequências negativas para a sociedade americana, sobretudo em relação ao acirramento da chamada “guerra cultural” e das questões raciais, tem sido cada vez mais questionado.

7. A celebração anual do Dia Mundial da Liberdade da Imprensa constitui uma excelente oportunidade para refletir sobre os direitos e princípios que fundamentam as intenções originais da ONU e da Unesco. Em tempos de BigTechs, IA, redes digitais e notícias falsas, parece incontornável que se enfrente o desafio de repensar as liberdades de expressão e da imprensa, exatamente para garantir que elas – e a democracia – sobrevivam.

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