OPINIÃO

Paulo José Cunha é professor da UnB, escritor e jornalista.

Paulo José Cunha

 

É tão inverossímil que se torna risível a versão de que os atos de 8 de janeiro do ano passado foram praticados por “infiltrados da esquerda”. Caraca! Então eram MILHARES de infiltrados, tanto pelas imagens quanto pelos vídeos gravados pelos próprios arruaceiros naquele dia nos três palácios invadidos! Pois o blogueiro Allan dos Santos, foragido da justiça nos Estados Unidos, acaba de declarar singela e simplesmente que "não havia infiltrado algum”. Segundo ele, “quem estava envolvido naquele quebra-quebra, de modo intencional, era a gente”. Pode-se dizer tudo dele, menos que é burro.

 

Há certas versões que se tornam ridículas de tão forçadas. Essa dos “infiltrados” é uma delas. Foi parar no voto em separado de alguns bolsonaristas que participaram da CPI dos Atos Golpistas, como Magno Malta (PL-ES), Eduardo Bolsonaro(PL-SP) e Eduardo Girão(Novo-CE). Como assim “infiltrados”, se eles próprios se autoindiciaram ao postar suas imagens invadindo, quebrando, rasgando, pichando, pisoteando, defecando, depredando, sujando, estragando e destruindo tudo o que iam encontrando pela frente, na crença idiota de que destruindo os palácios destruiriam junto os poderes que eles abrigam? Aliás, cadê os tais “infiltrados”? Alguém poderia apontar pelo menos UM, UM só entre aqueles milhares de fanáticos boçais que praticaram a maior agressão aos postulados da democracia desde sua restauração pós-golpe de 64?

 

Esse tipo de versão é o que permite explicar a absurda insistência dos que se opõem à regulamentação e à imposição de limites no uso das redes sociais e da inteligência artificial. Cuidados que não têm rigorosamente nada a ver com censura, como insistem em dizer, escrever e publicar por aí. É uma distorção proposital, com o único e exclusivo objetivo de fixar uma versão falsa no imaginário do povão. Outro dia, a deputada Bia Kicis (PL-DF) teve o desplante de afirmar numa entrevista que via a intenção de regulamentação das redes sociais e das big techs como “uma ameaça à democracia”, e sustentou o argumento cretino de que “o público e a audiência devem decidir o que pretendem consumir”. Como se uma mensagem propositalmente maldosa não causasse efeito imediato na audiência, que não tem tempo nem para decidir sobre o que vai ler, ouvir ou assistir, quanto mais tendo lido, visto ou assistido, checar se a informação é verdadeira ou falsa. Como alguém pode “decidir o que pretende consumir”, se a oferta de informações pelas redes sociais é impositiva, e não opcional? A intenção dos que defendem a ausência de regulamentação e limites é simplesmente deixar o caminho livre para a disseminação de versões mentirosas em benefício deles próprios ou dos políticos de baixa extração por eles apoiados. Daí os cuidados que a Justiça Eleitoral vem tomando. Seus ministros sabem perfeitamente o poder devastador que as fake news – e agora também as terríveis deep fakes, responsáveis pela criação de áudios e vídeos falsos, resultantes do uso maldoso da inteligência artificial – têm contra um(a) candidato(a). Vários(as) deles(as) foram simplesmente varridos pra baixo do tapete nas últimas eleições. Tanto aqui no Brasil quanto no resto do mundo. Vítimas de versões maldosamente falsas, seus prováveis eleitores, mesmo desconfiando da veracidade do que leram, ouviram ou assistiram, preferiram votar em outros candidatos. O mal triunfou. E ponto final. A Justiça Eleitoral estuda neste momento uma proposta de punição ao partido ou candidato que utilizar fraudulentamente a inteligência artificial. Mas é pouco. A punição deveria alcançar também qualquer pessoa ou instituição que incorra nos mesmos crimes. Um Monark, um Allan dos Santos, uma Carla Zambelli, uma Bia Kicis, um Filipe Barros ou um Daniel Silveira desse(as), campeões de fake news, não atuam apenas no período eleitoral. Operam o tempo todo, numa rede articulada que visa a destruição dos fundamentos democráticos pela imposição de uma “verdade” que de verdade não tem nem a sombra.

 

Sem punição, não há solução

 

Alguns especialistas defendem o diálogo com as plataformas digitais em relação ao uso da IA, por entenderem que ela pode ajudar criando mecanismos eficazes a favor da transparência eleitoral ou mesmo fornecendo ferramentas eficazes para a detecção da desinformação. Até aí morreu Neves. Mas se não houver uma legislação que imponha punições severas – e rápidas – aos criminosos virtuais, nenhuma dessas providências surtirá qualquer efeito.

 

Um exemplo simples. Tenho por hábito ler comentários publicados pelos leitores abaixo de algumas postagens das redes sociais. Constatei que a versão original tem um poder de fixação tão grande que não permite mudança de opinião. Ainda outro dia, enquanto ouvia uma senhora contar que havia se afastado do trabalho por causa de uma infecção urinária, três outras, que passavam ao lado e ouviram o relato, imediatamente confirmaram: “Você deve ter tomado a vacina da covid, não é? Isso é sequela da vacina. Por isso não se deve tomar, e o Bolsonaro estava certo quando disse que quem tomasse podia ter problemas. E até virar jacaré”. Ou seja: a morte de 700 mil pessoas pela covid-19, muitas delas vítimas do negacionismo, não alterou em nada a convicção errônea inculcada na cabeça delas. Insistem na versão original, mesmo essa versão tendo sido completamente desmascarada não apenas por especialistas, mas pela dolorosa realidade: 700 mil vítimas fatais causadas pelo vírus e pela falta de vacinação.

 

O que equivale a dizer que a desinformação, no caso das vacinas contra a covid, venceu e continua vencendo. Na Faculdade de Comunicação da UnB, onde sou professor de Telejornalismo, ensinamos aos alunos que o direito de resposta, embora defensável, tem efeito reduzidíssimo em relação à (des)informação original. O que equivale a dizer que o mal, depois de feito, não chega a ser nem arranhado por um desmentido.

 

Quando foi que você recebeu um desmentido, lembra?

 

Só pra finalizar e comprovar o que acaba de ser dito acima, vou repetir aqui, para os leitores desta coluna, a pergunta que faço aos meus alunos:

 

- Qual foi a última vez que você recebeu pelas redes sociais, principalmente pelo WhatsApp, um desmentido a alguma postagem mentirosa?

 

Você não se lembra? Pois saiba que repito a pergunta todo semestre e NINGUÉM se lembra. Porque os desmentidos simplesmente... não circulam. E a razão é bem simples: a mentira bem disfarçada tem um poder de atração e de convencimento milhares de vezes maior do que a verdade, mesmo que a verdade esteja apoiada em argumentos sólidos e comprováveis. Por isso a mentira circula milhares de vezes mais que a verdade. Pra finalizar, e agora é pra finalizar MESMO: é completamente falsa a velha afirmação de que, no fim, a verdade prevalece. O que prevalece, infelizmente, é a mentira. Por isso ela precisa ser E-VI-TA-DA. Porque depois da devastação que a mentira causou, nada mais pode ser feito.

 

 

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