OPINIÃO

 

André Faria Mendonça é professor do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília.

 

 

Eduardo Guimarães Santos é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ecologia pela Universidade de Brasília

André Faria Mendonça e Eduardo Guimarães Santos

 

Nos últimos anos as capivaras têm atraído a atenção do público e da imprensa em todo país. Em parte, isso se deve ao descobrimento desse animal como "instagramável”, sendo a protagonista de memes, posts, apelidos e lives. Em Brasília, o entanto, o que era motivo apenas de gracejo devido à proximidade com a população, vem tomando contornos obscuros com um evento recente de ataque a humanos e mais ainda pelo medo da febre maculosa. Entretanto, existe uma discussão profunda que cerca esse debate sobre as capivaras em Brasília: como escolhemos lidar com a fauna nativa que vivem nas cidades e que, eventualmente, se torna numerosa.

 

A história da expansão urbana é impressionante. O crescimento do nosso cérebro permitiu a dominação do planeta, desde o surgimento de nossa espécie na África (cerca de 300 mil anos atrás) até a dominação de todos os continentes. Como disse o neurocientista Miguel Nicolelis: “ao fim [de] dois milhões e meio de anos de evolução, os cérebros da nossa linhagem humana cresceram muito mais que o resto do corpo. [..] o crescimento em volume da massa cerebral humana, de aproximadamente três vezes, gerou um sistema nervoso que é por volta de nove vezes maior do que seria esperado para qualquer outro mamífero com o mesmo peso corpóreo que o nosso!”. Entretanto, foi apenas nos últimos 200 anos que intensificamos as modificações ambientais, principalmente devido ao avanço tecnológico e a maior necessidade de agrupamentos densamente povoados. Como consequência, surgiram as grandes cidades. Hoje, mais de metade da população mundial vive em áreas urbanas, com constante aumento projetado para o futuro. Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) é possível dizer que será nas cidades que os impactos da moderna exploração ambiental será mais intensamente sentido, principalmente devido ao forte adensamento.

 

Dentre os muitos problemas das grandes áreas urbanas, um parece passar despercebido: viver na cidade parece desconectar pessoas da natureza. É comum observar pessoas que andam pela cidade e não observam a fauna ao redor. Animais estão nas cidades, não apenas longe delas. Em uma praça durante uma tarde ensolarada podemos observar aves, calangos, micos, araras, muitas vezes ignorados pelas pessoas. Afinal, como poderemos lidar com os grandes desafios ambientais globais se as pessoas perderam a conexão com o ambiente natural? Como combater, por exemplo, a extinção global das populações selvagens se não existir uma conexão, um sentimento de pertencimento e cuidado? Não é possível conceber um futuro que seja “apenas para uma espécie”. Esse futuro será triste a vazio. Será a “Era da solidão”, como disse o biólogo Edward O. Wilson.

Podemos usar as capivaras que vivem em Brasília para discorrer um pouco sobre esse tópico que envolve a desconexão das pessoas com a fauna e o interesse de poucos sobrepujando o interesse coletivo.

 

A data é 28 de setembro de 2023 e tomamos conhecimento de uma audiência pública que tinha por objetivo discutir o controle da “superpopulação” de capivaras no lago Paranoá de Brasília, através de uma proposta de projeto de lei. O projeto de lei (PL) Nº 616/2023 foi protocolado na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) pelo deputado distrital Ricardo Vale (PT) com o objetivo principal de “Estabelece[r] medidas de prevenção e enfrentamento contra surtos de febre maculosa e outras doenças provocadas por carrapatos no Distrito Federal”. Na justificação do projeto vemos o primeiro “desajuste” do texto que diz que “Nos últimos dias fomos surpreendidos com a suspeita de um caso de febre maculosa”. Como ser surpreendido por uma doença que ainda aguarda ser diagnosticada? Mas isso não é o mais assustador do texto, que está cercado de informações que não condizem com a realidade (que iremos discutir melhor ao longo do texto). O texto chama atenção, por exemplo, para “o crescimento da população de capivaras na Orla do Lago Paranoá”. Essa informação não está baseada nos dados mais recente de monitoramento de capivaras no lago Paranoá. Ainda, a proposta de projeto de lei justifica como exemplo de suas possíveis atuações para redução dessa grande população de capivaras (ilusório) da seguinte forma: “Medidas semelhantes foram adotadas na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, e os resultados foram bastante satisfatórios. Em 2017, a população de capivaras no entorno da lagoa chegou a somar 100 animais. Em 2022, o número foi reduzido para apenas 12 animais”. Ou seja, basicamente a proposta é exterminar as capivaras seguindo exemplo de outras cidades que fizeram o mesmo.

 

O tópico em discussão durante a audiência pública era de alta relevância, pois o próprio governo do Distrito Federal tinha direcionado a pouco tempo recursos para realização de um grande projeto com várias metas, dentre elas: “estimar as populações de capivaras”, “avaliar a prevalência de carrapatos” (que são comumente associadas as capivaras), “entender a percepção pública em relação as capivaras”, e muitas outras metas. Foi um grande projeto tocado por diversos pesquisadores e geridos pela Universidade Católica de Brasília – UCB, contando com a participação pesquisadores de outras instituições como parceiros e voluntários, entre eles a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Universidade de Brasília (UnB). Ainda, participou do projeto o doutor José Roberto Moreira, um dos pesquisadores com o maior entendimento sobre capivaras do Brasil, com publicação de artigos científicos e livros sobre a espécie ao longo dos últimos 40 anos.

Quem acompanhou todo esse debate em Brasília durante esses anos pode perceber a construções desse inimigo (as capivaras) através da formulação de diversas estratégias. Essas estratégias serão combatidas com dados concretos que facilmente refutam tais afirmações. Mas afinal, a quem realmente interessa retirar as capivaras do lago Paranoá? Essa é uma pergunta complexa, mas que, após a audiência pública, ficou cristalino igual água limpa. A área do lago é estratégica para quem tem dinheiro e usa o ambiente de forma privada. Basta ir aproveitar a orla do lago e reparar no número de lanchas, barcos e grandes clubes que detém uma parte grande desse acesso. Na audiência pública, o representando dos clubes deixou claro como as áreas do lago não devem ser acessadas por capivaras que “invadiram nosso ambiente”. No fim, a aversão às capivaras tem mais relação com a presença dos animais em áreas privadas (e que deveriam ser públicas, tendo em vista as leis ambientais que regulamentam a orla de lagos e rios no Brasil), que ocupam os espaços e defecam nos gramados, trazendo um desconforto para essas poucas pessoas. O pensamento é: como eu não quero pensar em como conviver, vamos exterminar. Entretanto, precisamos manter a reduzida fauna que ainda persiste a expansão urbana, mantendo nossa conexão com a natureza. O interesse coletivo deve ser priorizado. Então, ambientalistas e protetores dos animais de Brasília e de todo o Brasil, “uni-vos!”.

 

Clique aqui para ler o artigo na íntegra

 

 

 

ATENÇÃO – O conteúdo dos artigos é de responsabilidade do autor, expressa sua opinião sobre assuntos atuais e não representa a visão da Universidade de Brasília. As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seu conteúdo.