OPINIÃO

Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e doutora em Sociologia pela UnB/Universidade de Barcelona.

Berenice Alves de Melo Bento

 

O sionismo, que busca se projetar como alma política do povo judaico, transforma todas as críticas às políticas de Israel em expressão de antissemitismo, sustenta autora. Nesse processo, afirma, o princípio de coabitação com outros grupos étnico-raciais, marco da ética judaica forjada na diáspora, perde espaço para um projeto que nega o reconhecimento da humanidade de palestinos e os impede de demandar reparação pela expulsão de suas terras.

 

A senhora me contava lentamente a história da sua família. Estávamos rodeadas de objetos-memória, e uma chave grande, escura, de ferro se destacava. "É a chave da casa dos meus pais. A casa está igualzinha, em Jerusalém." Era agosto de 2015, quando fiz minha primeira viagem à Palestina. A senhora que me doava sua história tinha 5 anos em 1947, quando viu sua casa ser invadida por sionistas. A chave foi um dos poucos objetos que a família teve tempo de recolher. "Por que a chave?" Ela sorriu e disse: "A gente acreditava que ia voltar". Ela vivia havia 63 anos em um campo de refugiados a poucos minutos da casa da sua família.

 

Estávamos em uma sala apertada e fazia muito calor. A distância entre as casas era mínima. A geografia do campo de refugiados Dheisheh, na Cisjordânia, não diferia das outras que conheci: ruas estreitas, janelas quebradas, algumas com marcas de tiros disparados por soldados israelenses, e o tempo infinito de espera pelo dia do retorno para casa. A limpeza étnica de 1947-48 levou à expulsão de cerca de 750 mil palestinos de suas terras e a destruição de 511 aldeias (Pappé, 2016, 2022; Masalha, 2021; Khalidi, 2013; Khalidi, 2022). Os métodos variavam, da ameaça ao massacre. Nesse período, 31 deles foram registrados, como o de Deir Yassin, onde mais de 200 pessoas foram assassinadas em 24 horas.

 

A maior parte dos palestinos passaram a ter uma nova identidade: apátridas e refugiados. Atualmente, segundo a ONU, são 58 campos de refugiados palestinos espalhados no Líbano, na Jordânia, na Síria, na Cisjordânia e em Gaza. Ao contar sua história e demandar o direito de retornar à sua casa, um direito reconhecido pela resolução 194 da ONU, de dezembro de 1948, essa senhora estaria cometendo um crime? Seria possível ela demandar reparação sem antes apontar o Estado de Israel como o responsável por sua não vida cidadã?

 

Entre os sionistas, no entanto, ela pode ser vista como criminosa: a senhora palestina é antissemita porque exige o cumprimento da resolução 194 e ousa acusar o país por sua condição de pessoa desprovida de direitos, o que termina por transfigurar os palestinos e seus aliados em antissemitas. Israel passou a tomar para si a totalidade da representação judaica e, ao fazê-lo, busca igualar todas as críticas às suas políticas coloniais e genocidas em expressão do antissemitismo. É como se o Estado brasileiro passasse a nos criminalizar porque afirmamos que há um genocídio continuado contra a população negra no país.

A ação judicial da Conib (Confederação Israelita do Brasil) contra Breno Altman, que pede que o jornalista, um judeu antissionista, seja suspenso de redes sociais e impedido de criticar publicamente o Estado de Israel, é um dos muitos exemplos dessa grave ofensiva. Os sionistas são como prestidigitadores que tentam criar ilusões — não com as mãos, mas com palavras. Genocídio? Não, "direito de defesa". Limpeza étnica? Não, "transferência". Este conceito, aliás, tornou-se central para negar o colonialismo. A senhora que me recebeu, por exemplo, teria sido transferida, não expulsa.

O mesmo léxico retorna agora, quando lideranças sionistas planejam o que fazer com a população sobrevivente de Gaza. A proposta do ministro de Segurança Nacional recupera a tradição dos seus antepassados: Itamar Ben-Gvir defendeu que os países árabes recebam os palestinos expulsos de Gaza. Isso estabelece uma linha de continuidade entre o passado e o presente. O projeto colonial sionista só estará concluído quando não houver mais a presença humana de palestinos, quando o mantra dos prestidigitadores sionistas ("não existe povo palestino") se concretizar.

Seria o sionismo uma ideologia que cumpre o que promete, ser a alma política do povo judaico? O que dizem sobre isso os israelenses que clamam pelo boicote a Israel, considerado uma ferramenta de pressão contra suas políticas de segregação e de genocídio? Em Caminhos Divergentes (Boitempo), a filósofa Judith Butler faz uma análise consistente da impossibilidade de reconhecer o sionismo — e, portanto, o Estado de Israe l— como a expressão da judaicidade. Como é possível que o povo que deu ao mundo o primeiro mandamento ("não matarás") possa exigir a eliminação de um povo nativo?

 

Pensadores judeus antissionistas acertam ao destacar que defensores de Israel transformaram a acusação de antissemitismo em arma de chantagem. Cabe seguir afirmando que a chave da questão palestina é a derrota do sionismo e a garantia do direito de autodeterminação do povo palestino. 
 
 
Antissemitismo é crime. Antissionismo é dever ético.
 
 
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Publicado originalmente, em 18 de janeiro, no site Folha de São Paulo
 


 

 

 

 

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