OPINIÃO

Anelise Rizzolo de Oliveira Pinheiro é professora associada do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília. Integra o GT Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva da ABRASCO e é Pesquisadora Associada do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional - OPSAN/UnB. Mestra em Saúde Pública pela Universidade Federal de Santa Catarina (2003). Doutora em Política Social pela Universidade de Brasília e possui pós-doutorado em Antropologia da Alimentação pelo ODELA - Observatório de La Alimentación da Universitat de Barcelona – Espanha.

Anelise Rizzolo

 

Todos nós comemos para viver, mas, se estudarmos a história da alimentação, vamos perceber que a suposta objetividade dessa questão nunca existiu. A alimentação é um fenômeno sociocultural que expressa desde as relações de partilha, afeto e emoções até o plano das relações sociais, econômicas e de poder político. A comida pode ser compreendida como uma expressão cultural e conceitual do que nos constitui enquanto sociedade.

As nossas escolhas alimentares são determinadas pelos aspectos econômicos, políticos e socioculturais. Só comemos o que é identificado como comestível, e só é comestível o que as culturas reconhecem. Ainda que na atualidade a dimensão individual do comer seja super estimada, ninguém come sozinho. Há sempre um sentido simbólico para as escolhas alimentares em diálogo com teias, redes ou arranjos de práticas e rituais que expressam nossos valores e significados coletivos. Tudo o que as pessoas são, pensam e fazem, seus atos e as suas consequências, são sempre significantes de algo. Por isso, o comportamento social, que está impregnado de valores éticos e morais, não pode ser reduzido a uma análise do comportamento individual.

Cozinhar e comer fazem parte das práticas do cotidiano da vida das pessoas. As práticas de comensalidade se modificam em relação às sociedades que as concebem. Estar “sentado à mesa” para a partilha das comidas tem um significado importante para o ocidente, contudo, para outras sociedades, como as indígenas, a mesa não está presente nos momentos de partilhas.

Os modos de comer se modificam em consonância com a realidade do seu tempo. No contexto atual, o “comer junto” ganhou outros contornos, principalmente após a pandemia de covid-19, que consolidou uma ruptura importante aos modos de viver. Há uma participação relevante do uso de tecnologias e ambientes virtuais mediando o ato de cozinhar e de comer. Além da televisão, o computador, videogames e também os diversos dispositivos móveis, como os smartphones, passaram a fazer parte das comensalidades. Pode-se estar junto não apenas presencialmente. Há quem esteja na mesa com alguns fisicamente ao seu lado, mas conectado e interagindo com outros on-line. Há quem esteja fazendo uma refeição sem acompanhantes, mas por meio de ligações ou videoconferências partilha o momento com alguém distante.

Comemos em lugares que extrapolam o espaço da mesa, como a cama e o sofá, e que vão além do ambiente doméstico, como o ato de comer ao lado de desconhecidos em um restaurante ou alimentar-se em pé, na rua, próximo a ambulantes ou ao food truck.

As políticas de fortalecimento do setor industrial para a disponibilidade dos produtos alimentícios ultraprocessados de preparo rápido, com um forte apelo publicitário, são determinantes para as mudanças nas escolhas alimentares. Por outro lado, a falta de fomento para programas de abastecimento e produção de alimentos saudáveis e a rigidez do processo de industrialização para grandes redes causam dificuldades para o acesso, valorização e comercialização de alimentos produzidos em escala artesanal. As excessivas regulamentações sobre higiene e manipulação de alimentos com o propósito de conferir credibilidade e segurança sanitária aos alimentos vem gerando grande impacto em termos de custo, identidade cultural dos alimentos e rituais de preparação: comida.

Assim, o modo de comer moderno expressa contradições inerentes da ordem econômica vigente que também determinam situações de fome e (in)segurança alimentar e nutricional, refletindo a lógica da subalternização de minorias, racismo, consumismo e mercadorização dos processos sociais, em meio a valores culturais tencionados por diferentes crises políticas, éticas e ambientais. A concepção clássica de comensalidade acoberta tensões, conflitos e violências, por meio de aspectos simbólicos que marcam subjetividades, desigualdades e cruzamentos interseccionais.

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