OPINIÃO

Marcus Tolentino Silva é professor adjunto do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde. É doutor em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília.

Marcus Tolentino

 

Vivemos em um mundo repleto de contrastes que se manifestam de maneiras diversas, especialmente no âmbito da saúde. Se de um lado, observamos avanços notáveis na tecnologia médica, no desenvolvimento de vacinas e na pesquisa científica, que têm o potencial de transformar vidas e aumentar a expectativa de vida, por outro, esses progressos coexistem com disparidades profundas e muitas vezes sistêmicas no acesso aos cuidados de saúde. É um paradoxo que milhões de pessoas, mesmo em países com sistemas de saúde estruturados, enfrentem barreiras para receber atendimento médico adequado, seja por razões financeiras, geográficas ou sociais.

 

No contexto brasileiro, essa contradição é particularmente visível. O país conta com o Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, concebido com a intenção de garantir atendimento universal e igualitário. O SUS é um marco na saúde pública, mas ainda enfrenta desafios significativos. Falta de recursos, gargalos na distribuição de serviços e dificuldades na gestão são alguns dos problemas que comprometem sua eficácia e abrangência. Assim, mesmo com uma estrutura que teoricamente deveria ser inclusiva e acessível, a realidade é que ainda há um longo caminho a percorrer para que todos os brasileiros possam usufruir dos cuidados de saúde de qualidade que são, afinal, um direito constitucional. O desafio, portanto, não é apenas manter o ritmo dos avanços tecnológicos e médicos, mas garantir que esses avanços beneficiem toda a população de forma equitativa.

 

Muitas pessoas, especialmente as mais vulneráveis, encontram inúmeros obstáculos para receber os cuidados médicos de que necessitam. Essas barreiras podem ser financeiras, como custos elevados de tratamentos e medicamentos, ou até mesmo geográficas, em regiões onde hospitais e clínicas são escassos. Obstáculos burocráticos, como a dificuldade de marcar consultas e a falta de documentos, podem ser igualmente desencorajantes. A situação se agrava ainda mais em períodos de crises de saúde pública, como ocorreu com a pandemia da COVID-19, que sobrecarregou sistemas de saúde ao redor do mundo. Da mesma forma, problemas sociais e políticos podem exacerbar esses desafios, como é o caso de países atualmente em estado de instabilidade, como Mali, Serra Leoa, Afeganistão e outros, onde conflitos e pobreza tornam o acesso a cuidados médicos ainda mais difícil.

 

Nesse contexto, o papel desempenhado pelos sanitaristas é importante e não pode ser subestimado. Eles são essenciais para a elaboração, implementação e monitoramento de políticas de saúde pública que afetam milhões de vidas. Esses profissionais contribuem com seus conhecimentos especializados na análise e interpretação de dados epidemiológicos, na formulação de estratégias de intervenção e na avaliação de seus impactos. No entanto, muitos podem não estar cientes de que, apesar de sua importância estratégica, a profissão de sanitarista ainda não conta com uma regulamentação abrangente. Essa lacuna legal apresenta um desafio considerável, pois dificulta a padronização das práticas e responsabilidades desses profissionais, o que, por sua vez, pode afetar a qualidade dos serviços de saúde. Atualmente, um projeto de lei (PL 1821/2021) está em tramitação, buscando justamente abordar essa deficiência. O projeto tem como objetivo fornecer um arcabouço legal para a profissão, estabelecendo critérios claros para a habilitação e atuação dos sanitaristas, algo fundamental para a eficácia e eficiência do sistema de saúde como um todo.

 

O papel do sanitarista no SUS transcende a burocracia do Estado. Estes profissionais não se limitam a uma perspectiva estritamente médica; adotam uma abordagem mais holística para entender e melhorar a saúde pública. Isso significa que eles levam em conta uma ampla variedade de fatores que impactam a saúde da população, incluindo condições socioeconômicas, ambientes de trabalho, acesso a serviços e qualidade de vida. Eles também examinam como fatores ambientais, como poluição e saneamento, podem afetar o bem-estar geral da comunidade. Por meio de análise de dados, planejamento estratégico e implementação de políticas, os sanitaristas têm a capacidade de promover mudanças significativas que beneficiam não apenas indivíduos, mas comunidades inteiras. No contexto do SUS, essa visão multidisciplinar é essencial para formular políticas de saúde que são verdadeiramente inclusivas e equitativas.

 

Então, por que abordar esse tema é tão relevante? A razão é direta: para assegurar um sistema de saúde inclusivo e eficaz, os sanitaristas necessitam de um respaldo legal sólido para exercer suas funções com eficácia e segurança. Sem uma regulamentação apropriada que estabeleça as diretrizes, responsabilidades e deveres desses profissionais, fica consideravelmente mais difícil implementar e manter políticas de saúde pública que alcancem todos os segmentos da população. A ausência dessa regulamentação não apenas compromete a eficácia do trabalho dos sanitaristas, mas também tem um impacto negativo sobre a saúde e o bem-estar da população em geral. Isto é especialmente crítico em um país tão diverso e com tantas desigualdades em acesso a cuidados de saúde como o Brasil.

 

Portanto, é hora de aumentar o debate sobre o PL 1821/2021. A saúde, conforme estabelecido pela Constituição, representa um direito de cada cidadão e uma obrigação do Estado. Mas a concretização desse direito não ocorre automaticamente; exige um sistema robusto que seja tanto eficaz quanto equitativo. Isso significa contar com uma força de trabalho altamente qualificada, incluindo sanitaristas, médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, que atendam às necessidades complexas da população. Para que esses profissionais executem suas funções com eficácia, é fundamental que existam leis claras, justas e atualizadas que os apoiem em suas atividades. Isso inclui a regulamentação da profissão de sanitarista, a alocação adequada de recursos e a implementação de políticas públicas baseadas em evidências científicas. A ausência de qualquer um desses elementos pode criar lacunas no sistema, permitindo que alguns grupos fiquem desassistidos. Portanto, para alcançar o objetivo de um sistema de saúde verdadeiramente inclusivo, onde "ninguém fique para trás", é necessária uma abordagem multifacetada que una forças políticas, profissionais de saúde e a sociedade civil em um esforço coletivo para transformar esse direito constitucional em uma realidade palpável para todos.

 

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