OPINIÃO

Paulo José Cunha é professor da UnB, escritor e jornalista.

Paulo José Cunha

 

Alguns jornais deram a notícia num canto de página. Aos seus editores pareceu apenas um ato sem maior importância a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de retirar as Forças Armadas do grupo de entidades responsáveis pela fiscalização das eleições. Na verdade, essa é uma das mais importantes notícias dos últimos dias, mais importante até do que aquele espetáculo ridículo do general Heleno mentindo descaradamente e proferindo palavrões a mancheias na CPI dos Atos Antidemocráticos, fato que foi parar nas manchetes. Isso porque as Forças Armadas nunca deveriam ter sido investidas dessa atribuição. Essa invenção fez parte da armação montada pelo governo Bolsonaro, quando aparelhou a máquina do estado com a nomeação desenfreada de militares tanto da ativa quanto da reserva para ocuparem ministérios, agências, autarquias e demais órgãos. Na sanha de atrair as Forças Armadas a seu grupo de apoio, deu a elas uma atribuição que nunca lhes coube desde a implantação da república com Deodoro, lá em 1889.

 

Bolsonaro invocou a tese estúpida, mentirosa e sobretudo perigosa pela sua feição golpista, de que as Forças Armadas seriam o poder moderador encarregado de dirimir as pendengas entre os três poderes. Aliás, vale abrir um parêntese aqui, para dizer que passa da hora de se instituir um rito realmente republicano para a escolha dos onze ministros que compõem o Supremo. Não é mais possível que essa escolha continue submetida aos humores e às conveniências políticas de quem descansa as nádegas naquela cadeira do Palácio do Planalto, seja Deodoro, JK, Lula ou Bolsonaro. “Ah”, dirão, “mas o nome indicado pelo Presidente da República é referendado pelo Senado”. Até aí morreu Neves, mas é bom lembrar que, em nome da harmonia entre os poderes, ao longo da história republicana somente na gestão do segundo presidente da república, o “marechal de ferro” Floriano Peixoto, que assumiu o poder a bordo de um golpe, os quatro nomes que ele indicou ao Supremo Tribunal de Justiça, como se chamava à época, foram recusados pelo Senado, que rangia os dentes para as violências do florianismo. Do século 18 pra cá a escolha dos integrantes da Suprema Corte continuou exatamente seguindo o mesmo critério superado, imperial e absurdo. Todos os indicados foram religiosamente aprovados pelo Senado. O presidente indica, o Senado carimba a indicação e tamos conversados. Essa rotina se naturalizou de tal forma que poucos são os juristas que levantam a voz para condená-la defendendo uma escolha técnica baseada na competência do ocupante de um cargo de tamanha relevância. Uma prova inconteste do equívoco do atual critério está aí, à vista de todos: os dois ministros indicados por Bolsonaro votam de forma irrepreensível conforme a cartilha bolsonarista, e não de acordo com as provas hauridas dos autos. Antes mesmo de emitirem seus votos, eu, você e o pipoqueiro da esquina sabemos precisamente como Nunes Marques e André Mendonça votarão. Antes de fechar o parêntese, vale lembrar que esse critério criou uma situação absurda de tão patética. Foi o seguinte: a atual Constituição reafirmou em seu artigo 102: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”. Mas exatamente às 15h45m do dia 5 de outubro de 1988, quando Ulysses Guimarães levantou o livrinho no plenário do Congresso e promulgou a “Constituição cidadã”, oito dos onze ministros do Supremo daquela época tinham sido indicados... pelos generais-ditadores! E não havia nada a fazer, pois os ministros do Supremo, depois de empossados, tornam-se vitalícios. Só saem de lá, como é o caso agora da ministra Rosa Weber, ao completarem 75 anos de idade. Uff! Fecha parêntese! Aliás, fecha não: é preciso lembrar também que quando Bolsonaro deu a canetada atribuindo às Forças Armadas a função estapafúrdia de fiscalizar as eleições, quem referendou esse absurdo foi o então presidente do TSE e desde quinta-feira presidente do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso. O tempo é implacável. E olha que Barroso tem sido um ministro sério, competente e isento. Fecha parêntese...de novo!

 

A retirada da atribuição de órgão fiscalizador de eleições às Forças Armadas (assim como ao próprio Supremo, que não tem competência nem expertise técnica para isso) é mais uma etapa na infindável remoção dos chamados entulhos autoritários. Essa excrescência de dar poder fiscalizador de eleição à milicada foi criada nas lixeiras do Palácio do Planalto ainda no ano passado, poucos dias antes da eleição que quase virou golpe. O ministro Alexandre de Moraes, no voto em que defendeu a saída das Forças Armadas dos órgãos encarregados da fiscalização das eleições aproveitou e removeu em definitivo o próprio Supremo dessa atribuição. De acordo com ele, o STF já tem seu papel definido na Constituição como entidade máxima do Poder Judiciário. O STF, inclusive, é a instância à qual é possível recorrer contra decisões do próprio TSE.

 

Para concluir: ao contrário da tese que uniu Bolsonaro e a presidente do PT, Gleisi Hoffman (!), segundo a qual é absurdo que o Brasil seja o único país a ter uma Justiça Eleitoral, tal fato deveria ser motivo de muito orgulho para todos os brasileiros. Somos vanguarda nessa área! Afinal, assim como o voto eletrônico, que varreu do mapa as fraudes praticadas no tempo do voto de papel, estamos à frente de países como os Estados Unidos, onde as cédulas de papel até hoje não foram para a lata do lixo. E onde não existe uma Justiça Eleitoral. Devemos, sim, nos orgulhar de nossa Justiça Eleitoral. Foi ela que acabou de colocar as Forças Armadas de volta ao seu papel constitucional de instituição de apoio logístico das eleições, como sempre foi. E ponto final.

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