OPINIÃO

Norma Diana Hamilton é professora do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução (LET/IL/UnB). Doutora em Literatura e Práticas Sociais.

Norma Diana Hamilton

 

Criar literatura é fazer interpretação de uma realidade possível… ou até impossível! Aristóteles dizia que o ofício do literato é representar não o que deveria ser, mas o que poderia ser: “o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (2020, p. 19). A palavra “necessidade” aqui me aponta para a ideia do uso da literatura para contribuir no suprimento das demandas sociais. No reino da arte das palavras, o(a) escritor(a) é um(a) deus(a), pois tem o poder de criar um microcosmo do jeito que bem entender. Ele ou ela reserva o direito de criar ou não em sua escrita caminhos que possam servir para contribuir à problematização de questões públicas, embora a sua autonomia não reja sobre a construção de sentidos da obra, conforme a ideia da “morte do autor” de Roland Barthes.

 

A literatura que atende a questões sociais, no sentido de provocar reflexões e diálogos críticos sobre a nossa realidade, pode ser referida como literatura de engajamento. No entanto, é importante lembrar que a literatura, por ser uma arte, não alimenta quaisquer obrigações. Mesmo assim, ela acaba realizando funções de humanização e de formação, como apontou Antonio Candido.

 

Nas palavras da escritora brasileira Verenilde Pereira:

    

A literatura quer algo mais, ela quer aquela instância do que não foi dito, do infindável, do que não terminou ainda. Daquilo que não tem um ponto final, porque você termina uma [obra] com o ponto final, mas o personagem tá sempre inquieto. Qual é a próxima pergunta? Onde a humanidade vai dar? É essa instância do que não foi dito, do que tá submerso ainda, é que a literatura vai procurar.1

 

Concordo com a visão de Pereira, pois a literatura, ao trazer o passado, acaba desempenhando o papel de resgate de histórias individuais e coletivas e, ao olhar o futuro, especula, prevê alguma coisa, antecipa o mundo. A prática literária é uma forma de falar do mundo dentro de uma preocupação estética.

 

Produzir a escrita criativa pode ser um ato de emancipação, uma vez que envolve a reconstrução das concepções sociais e das identidades individuais ou compartilhadas. Historicamente, a literatura foi vista como pertencente à classe da elite, visto que, em geral, foi produzida e consumida por ela. A elite construiu fronteiras para demarcar o que seria literatura de alta qualidade, em oposição ao que não seria. As obras dos demarcados “grandes escritores” formariam o que se chama o cânone literário. Enquanto isso, as pessoas das classes de baixa renda (ou sem renda, apesar de trabalharem duro) — destaco o contexto das mães que cuidavam ou cuidam de suas(seus) filhas(os) — não teriam tido o tempo, o espaço ou o recurso financeiro necessários para adquirir ou produzir literatura. No caso das mulheres da classe média, Virginia Woolf apontava que, para elas produzirem escrita criativa, precisavam de um teto todo seu, ou seja, de espaço, de tempo, além de outros recursos.

 

Apesar dos empecilhos, as pessoas vulnerabilizadas econômica e socialmente têm conseguido acesso à literatura, por seus próprios esforços. E, ao trazer novas perspectivas para a produção literária, elas têm contribuído tanto para ampliar as possibilidades do fazer literário dentro ou fora do cânone quanto para nivelar as lutas das relações de poder no campo da batalha literária. Elas são responsáveis ainda por construir novas concepções não somente sobre o que é criar literatura, mas também sobre suas próprias identidades sociais, inserindo suas vozes nas decisões relativas ao rumo de sua nação. Desse modo, criar literatura é ação político-emancipatória!

 

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1. Fala da escritora em evento de sua homenagem, na II Feira de livros e artes de mulheres escritoras pretas, FLAME 2023.

 

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