OPINIÃO

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. 

Luis Felipe Miguel

 

10 desafios que é preciso vencer para garantir a democracia no Brasil

 

1) Afirmar o poder civil. É preciso produzir uma elite militar compatível com a convivência democrática, rompendo com seu monolitismo ideológico, combatendo a tradição salvacionista que as faz se entenderem como tutoras dos rumos do país, fortalecendo uma cultura de serviço público condizente com a submissão ao poder civil. Isto implica mexer na formação do oficialato, diversificar os contatos com o mundo civil e também adotar um protocolo de tolerância zero em relação a comportamentos e declarações políticas indevidas.

 

2) Disciplinar as polícias. A produção de polícias compatíveis com a ordem democrática e o Estado de direito exige investimento em sua profissionalização, a superação da resistência corporativa para que sejam implementadas as medidas de reorganização funcional necessárias (unificação, desmilitarização) e também o enfrentamento do discurso ideológico que enaltece a brutalidade e o desrespeito aos direitos humanos como instrumentos imprescindíveis das políticas de segurança pública.

 

3) Democratizar a mídia. A concentração da capacidade de produção da informação em uns poucos conglomerados familiares, com alinhamento político uniforme e baixos padrões de profissionalismo, descaracteriza a competição democrática. É necessário combinar medidas de ampliação da concorrência no mercado com o suporte à produção cultural e noticiosa dos grupos dominados, a fim de que se tornassem mais capazes de disputar a agenda pública e os enquadramentos hegemônicos.

 

4) Regular as redes. O império das big techs avilta o debate público, fragiliza a cidadania, incita a violência e dá guarida a extremistas. Afirmar o respeito às leis nos espaços virtuais é essencial.

 

5) Garantir a laicidade do Estado. Ela é um pré-requisito da democracia: se há uma vontade divina a ser forçosamente obedecida, a soberania popular não tem como se estabelecer. Concretamente, sua debilidade abre caminho para a manipulação política das crenças religiosas, alicerçada na agitação contrária aos direitos de diversos grupos: mulheres, LGBTs, indígenas.


6) Reforma política. A questão é melhorar a qualidade da representação política, aprimorando o diálogo entre representantes e representados, aumentando a responsividade de uns aos interesses dos outros. Isto exige múltiplos enfrentamentos – às oligarquias partidárias, ao poder econômico, à influência das igrejas, às milícias. E exige, sobretudo, o estímulo à participação política e ao associativismo civil, uma vez que a qualidade da representação se vincula à educação política e à capacidade de produção autônoma dos interesses coletivos.

 

7) Preservar o meio ambiente. Dada a importância do Brasil no equilíbrio ambiental do planeta, trata-se de uma questão com consequências que transcendem as fronteiras nacionais. Não há como ser adiado o encaminhamento de um projeto que compatibilize o bem-estar das populações e o suprimento das necessidades dos mais pobres com o respeito à natureza – o que implica transferir a conta da proteção ambiental para os mais ricos, seja mudando as práticas das empresas, seja reduzindo o consumo ostentatório das pessoas físicas.

 

8) Enquadrar o sistema financeiro. É preciso estabelecer um programa de desenvolvimento nacional com redistribuição de riqueza. Para tanto, o modelo tributário tem que ser redefinido, de maneira a torná-lo verdadeiramente progressivo e a desestimular as práticas especulativas.

 

9) Afirmar a soberania nacional. A influência imperialista sempre foi um limite à democracia. A ausência de um projeto nacional por parte da nossa burguesia, acomodada no papel de sócia menor do capital estrangeiro, também não ajuda.

 

10) Reconstitucionalização. É preciso que voltem a vigorar os marcos definidos em 1988 para a vigência dos direitos e o disciplinamento das disputas políticas. O processo de desestabilização do governo petista, que culminou no golpe de 2016, promoveu uma desorganização das relações entre os poderes, que passaram a medir forças a cada nova situação de tensão. O governo Bolsonaro agravou o quadro, com um modus operandi que consistia em ciclos de bravatas, ameaças e acomodações – no espírito mais do “grande acordo nacional” de que falou Romero Jucá do que do respeito à Constituição.


Há muitos desafios mais. Não é difícil ampliar a lista. Ninguém falou que seria fácil.

O governo Lula tem avançado timidamente em alguns pontos, quase nada em outros. A correlação de forças não é favorável.

Por isso, a tarefa urgente é mudar a correlação de forças. E isso se faz com mobilização, organização e educação política permanente.

 

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Publicado originalmente no Jornal GGN em 19/07/23.

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