OPINIÃO

Nelson Fernando Inocêncio da Silva é professor do Departamento de Artes Visuais, do Instituto de Artes, da Universidade de Brasília e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab/Ceam/UnB). É doutor em Arte pela UnB.

Nelson Fernando Inocêncio da Silva

 

Entre fins dos anos 1970 e começo dos anos 1980, a partir do declínio da ditadura, desgastada e desmoralizada, inicia-se o processo de distensão sucedido pela abertura política. No curso das mobilizações em defesa da redemocratização do país, a Universidade de Brasília (UnB) procurava retornar aos seus propósitos desde a origem, os quais, por força das circunstâncias, foram abandonados pelo caminho. Em 1986, durante a gestão de Cristovam Buarque à frente da Reitoria, foi criado o Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam), constituído por uma série de núcleos temáticos com o intuito de dar ênfase a assuntos de pouca visibilidade nos currículos tradicionais das graduações.

 

O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, pertencente à estrutura do Ceam, surgiu no mesmo ano da fundação do referido centro, comprometido com o adensamento e o espraiamento da pesquisa em torno dos problemas que afetam diretamente a população negra brasileira. Naquele período, praticamente, não havia letramento racial da comunidade universitária capaz de fazê-la compreender o caráter tóxico do racismo. A evidência disso pode ser constatada a partir de uma insólita experiência no câmpus.

Em certa manhã do mês de junho de 1987, paredes e muros do Departamento de Desenho, atual Departamento de Artes Visuais, amanheceram pichadas com os seguintes dizeres: "Viva o apartheid!", "Morte aos negros!". A professora Maria de Lourdes Theodoro, lotada naquela unidade, prontamente acionou o Movimento Negro local para, juntos, realizar um ato de desagravo. O contexto não era favorável para ampla adesão de docentes, discentes e técnicos. Nem mesmo a Reitoria havia entendido a gravidade da questão. Curiosamente, quatro anos depois, em agosto de 1991, Nelson Mandela, referência da luta antiapartheid, receberia o título de Doutor Honoris Causa pela UnB.

 

A sociedade e o Estado brasileiro raramente demonstravam dificuldades no reconhecimento e condenação do racismo para além das nossas fronteiras. Todavia, admiti-lo como fenômeno doméstico estruturante da organização social era outra história, principalmente, porque nós nos encontrávamos ainda entorpecidos, em larga escala, pelo mito da democracia racial, alimentando a inércia que resultou no atraso da adoção de políticas públicas endereçadas ao povo negro.

É nesse ambiente, por exemplo, que nos deparamos com "o caso Ari", episódio dramático que acabou repercutindo em toda UnB. Em 1998, um doutorando negro e homossexual, após reprovação em uma disciplina de um programa de pós-graduação, recorre aos seus direitos. Em resumo, o que ficou constatado explicita que fobias e intolerâncias, das quais o mencionado aluno tornou-se alvo, não são fenômenos estranhos ao mundo acadêmico.

 

Desse capítulo traumático, surge o projeto de cotas raciais para UnB, assinado pela professora Rita Laura Segatto e pelo professor José Jorge Carvalho, em consonância com as reivindicações do Movimento Negro brasileiro, que já discutia e produzia documentos alusivos às reparações e políticas de ações afirmativas.

Com certa surpresa e algum mal-estar, parte da comunidade universitária foi impelida a participar do debate que percorreu as unidades acadêmicas até chegar aos conselhos superiores. Em 6 de junho de 2003, em reunião histórica, o Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão (Cepe) delibera sobre a política de cotas raciais nos exames vestibulares da instituição. A implementação aconteceu no ano seguinte. Diante de uma série de reações negativas dos setores mais reacionários da sociedade, a UnB, primeira instituição federal de ensino superior a adotar cotas raciais, manteve-se firme diante da artilharia pesada, por decisão política do então reitor Timothy Mulholland.

O sistema de cotas da maneira como foi pensado reconhecia o racismo enquanto fator estruturante da sociedade brasileira e raça na condição categoria autônoma, capaz de explicar-se por si mesma. Até 2011, nos dedicamos ao aprimoramento da política com a determinação de evitarmos as fraudes e garantirmos a qualidade dos processos. Para tanto, investimos nas bancas de heteroidentificação, recurso imprescindível no combate à burla.

 

Em 2012, depois que o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, reconheceu a constitucionalidade das cotas raciais, o governo federal promulgou a Lei n° 12.711/2012, que, embora inclusiva, subordina a questão racial à questão de classe, além de destacar apenas a autodeclaração como critério para acesso às universidades. Desse modo, desconsidera a necessidade da heteroidentificação. A referida lei uniformiza a política no plano nacional, mas despreza experiências pregressas, a exemplo daquela estabelecida pela UnB quando tudo parecia deserto.

 

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Publicado originalmente no Correio Braziliense em 06/06/23.

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