OPINIÃO

 

Tânia Mara Campos de Almeida é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora-UFJF , mestra e doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília-UnB, com pós-doutorado em Representações Sociais pela UnB e pela Universidade de Provence e pela EHESS (França). Professora do Departamento de Sociologia - SOL e Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres - NEPeM
UnB.

Tânia Mara Campos de Almeida

 

Se foi pelas palavras que Lourdes e eu realizamos várias parcerias nestes 28 anos, hoje, estas me escapam. Parece que nada mais precisa ser dito diante das inúmeras manifestações divulgadas: notas de pesar por seu falecimento, de reconhecimento de sua brilhante trajetória acadêmica e seu incansável ativismo em defesa dos direitos das mulheres, de registro de sua obra expoente, de seu compromisso com a administração universitária, com a docência, pesquisa e extensão, de agradecimento por ensinamentos e, ainda, de solidariedade à família e amigas/os. Todas me contemplam e, ao mesmo tempo, nenhuma delas.

Ainda que partilhe do que expressam e a voz coletiva seja fundamental para a elaboração das perdas, em particular, de pessoas que se tornam públicas, o luto possui uma dimensão íntima e incomunicável.


Rendo-me aqui às lembranças mais singelas que dela trago, experiências da ordem do indizível, da mera satisfação de termos protagonizado cenas banais e jocosas, sem o propósito de escrevermos artigos, organizarmos coletâneas, ministrarmos aulas, respondermos a atividades que nos impulsionavam a resultados, produtividade e desempenho. Talvez seja essa ordem não-conceitual e até anedótica que viabilizou a amizade entre personalidades tão diferentes, emergindo aí um vínculo inesperado para mentes de lógica científica. Foge à razão termos nos acompanhado de perto por década. Em isolamento social, não nos víamos presencialmente há dois anos. Nesse período, trocamos breves mensagens e, nelas, o recíproco desejo de futuras parcerias com leveza. O reencontro do pós-pandemia, do pós-aposentadoria dela, do pós-papéis e poderes institucionais que nos retiravam do fluxo do sensível não chegou; veio a imperiosa despedida e um vazio simbólico.


Reencontro-a agora longe do léxico estabelecido, caminho, aliás, que percorremos juntas. Tentamos dar visibilidade ao que não era nomeado, a violências normâles [1] e silenciadas, empenhando-nos em trazer à tona o que estava sob as estruturas de gênero e, assim, gerar novas possiblidades discursivas, éticas e práticas. Comprometida com esse avesso do mundo e inspirada por um orientando que relatou ter sabido de uma “femenagem”, não homenagem, à Lourdes, busco fazer o mesmo e em coerência ao que ela se propunha: não seguir nas trilhas do tributo ao senhor feudal, como vassalos no surgimento dessa palavra cujo radical vem de homo, homem valoroso e validado pelo clero e nobreza. A referência ao herói patriarcal, que rompe pontes e se aparta da plenitude humana em si e nos outros, não condiz com sua memória feminista.


Que Lourdes siga enunciada por inteiro, em seus grandes, complexos, intensos e, também, pequenos feitos e afetos, ditos e não-ditos!

 

[1] Neologismo em francês ao se fundir “normais” (normales) com “masculinos” (mâles) pelas organizadoras da obra, por Lourdes e por mim prefaciada no Brasil, O Gênero nas Ciências Sociais – releituras críticas de Max Weber a Bruno Latour, EdUnB e Unesp, 2014.

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