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OPINIÃO

Daniela Luciana e Raíssa Gomes são jornalistas, servidoras públicas e integrantes da Irmandade Pretas Candangas e do Coletivo Paó Comunicação

Daniela Luciana e Raíssa Gomes

 

As mulheres abriram os caminhos para o Novembro Negro. Artistas da França, Guiné-Conacri, do Brasil e do Distrito Federal foram protagonistas da primeira edição do Festival Yalodê, entre 1º e 3 deste mês, no Museu Nacional da República. A administradora do Plano Piloto, Ilka Teodoro, primeira negra a ocupar o cargo, entregou as chaves da cidade às cantoras, produtoras, mestras de cerimônias, mulheres presentes como ato simbólico e inspirador.


Uma força de trabalho majoritariamente negra e feminina teve que agir para que se concretizasse o Yalodê, idealizado pela produtora Sara Loiola. Aliás, trabalho não falta nos 365 dias do ano. Os esforços são notáveis e começamos com o Latinidades AfroLatinas, maior festival de mulheres negras da América Latina e Caribe, idealizado por Jaqueline Fernandes e Chaia Dechen.

 

Nos últimos anos, o Latinidades ocorria em julho, sediado em Brasília, mas este ano teve que ser realizado em São Paulo. Seu legado é referência para outros eventos que começaram, ou foram fortalecidos, a partir dessa experiência exitosa. Em abril deste ano, Samambaia recebeu o Festival Magia Negra, evento que se nomeia desconstruindo estereótipos, idealizado e coordenado pela artista negra Suene Karim, moradora da cidade.

 

Em julho de 2018, Ceilândia se tornou palco principal do ODU — Festival de Arte Negra, que teve produção de artistas negros e foi idealizado por Victor Hugo Leite, Luísa Labatte e Leno Sacramento. A programação abrangeu teatro, dança, cinema, poesia, artes plásticas e música.

 

Setembro foi o mês do Festival Cara e Cultura Negra, numa programação diversa que incluiu debates e apresentações artísticas em espaços do Plano Piloto, e teve curadoria do artista e professor Nelson Inocêncio, a partir do tema Contemporaneidade Afrodiaspórica.

 

Na contemporaneidade, em diálogo com tecnologia e ancestralidade, vem o Festival Favela Sounds — A rua do mundo, que começou dia 11 e vai até segunda-feira (17), com assinatura geral de Guilherme Tavares, produtor não negro, que trabalha para colocar a população da periferia como protagonista.

 

O Afoxé Ogum Pá abre os shows do Favela Sounds e também encerrou o Festival Magia Negra, em abril. O Afoxé exemplifica a conexão cultural passado-futuro, centro-margem, ao se apresentar conforme tradição centenária em espaços onde a juventude negra é maioria com um repertório que conta nossa história de luta.

 

Dito isso, observamos a efervescência de homenagens, eventos, shows, manifestações e atividades escolares (previstas pela Lei nº 10.639/2003) no mês de novembro. A lei é mais uma conquista que resulta de intensas ações da militância negra brasileira, assim como a criação do Dia Nacional da Consciência Negra, no dia 20, data de aniversário do assassinato de Zumbi dos Palmares.

 

No Distrito Federal, ao contrário de diversas cidades brasileiras, a data ainda não é feriado. Essa é uma demanda a ser atendida. Ao somar pretos e pardos, a população da capital é majoritariamente negra: 58% (1,66 milhão de moradores). No mínimo, é de estranhar — e lamentamos profundamente — que o 20 de Novembro não seja feriado, que pautas e temas que contemplem a maioria da população não sejam constantes, que a produção artística e cultural local — viabilizada o ano inteiro também por pessoas negras — não contemple a identificação racial da maioria.

 

Parte da invisibilização das pautas da população negra vem do desejo de negação da força e presença afrodescendentes, preteridas em favor da mestiçagem, tão defendida como valor brasileiro, além da tentativa de apagamento dos traços, história e presença dos povos negros neste país. Outra falácia que se perpetua é a visão de que o lugar do negro é restrito à cultura. Diversas iniciativas históricas de organizações negras provam o contrário. Estamos presentes nas artes, mas também na ciência, na tecnologia, na medicina, no direito e, claro, na política.

 

Na última semana, uma iniciativa da jornalista Maria Paula de Andrade reuniu, na Câmara Legislativa, representantes negros da política (inclusive dos bastidores) do Distrito Federal. Emergiu nessa roda de conversa, acima de qualquer sigla partidária, a importância de garantir a representação negra nas instituições e instâncias de decisão.

 

Esse movimento não é novidade. O Brasil teve e tem organizações políticas compostas exclusivamente por pessoas negras, que até já se constituíram partido político, como a Frente Negra Brasileira, nos anos 1930. No entanto, desde o assassinato de Marielle Franco, a presença negra nessa esfera de decisão ganhou novos contornos. É na esfera pública que devem ser garantidas políticas, estratégias e recursos para que as narrativas diversas da maioria da população não estejam restritas ao mês de novembro.

 

Em 14 de junho deste ano, o Governo do Distrito Federal publicou alterações no decreto que regulamenta a Lei Orgânica da Cultura que contemplam a inclusão das ações afirmativas e a promoção de direitos de pessoas com deficiência, idosos e igualdade racial e de gênero. As políticas públicas estão na legislação distrital e cabe à sociedade acompanhar e cobrar que as diretrizes se concretizem. Precisamos da cultura e da arte, de espaços estratégicos e de sustentabilidade. De novembro a novembro, precisamos construir autoestima, referências musicais, teóricas, poéticas, de artes visuais, políticas, uma vez que produzimos, consumimos e votamos.

 

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Publicado originalmente no Correio Braziliense em 16/11/2019

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