artigos
OPINIÃO

Cristiano Paixão e José Otávio Guimarães

 

O atentado desta quarta-feira, 7 de janeiro, em Paris, contra o Charlie Hebdo apresenta-se como evento único. Não apenas por sua violência perturbadora, mas sobretudo pelos efeitos que pode produzir.

 

Algumas reações, logo após o ataque, merecem destaque. Revelam modos de uma sociedade estar no tempo: relações entre tradição e contemporaneidade, entre passado, presente e futuro.

 

Como era de se esperar, quase toda a classe política francesa, apoiando-se nos valores democráticos da tradição republicana, condenou o morticínio. Uma observação mais atenta desses pronunciamentos revela, contudo, que escondem claros cálculos políticos. Integrantes da oposição, tanto de centro-direita como da direita radical (representada pela Frente Nacional), falam em “guerra total contra o terror”, postulam “medidas de exceção”, pedem que se recrudesça um direito penal leniente ou dizem que o atentado poderá “liberar o discurso” em relação ao “fundamentalismo islâmico”. Elegendo um inimigo ao mesmo tempo visível e indeterminado, esses atores políticos recorrem à batida estratégia de ativação do medo. Nada de novo nessa atitude. Já no século XVII, sob o argumento da generalização do horror causado pelas guerras civis de religião, construiu-se o argumento da necessidade de um Estado absoluto.

 

Ao mesmo tempo, algo diferente parece ter ocorrido. Em várias cidades francesas, houve manifestações espontâneas de solidariedade e defesa da democracia. Os principais jornais estimam em 100.000 o número de pessoas nas ruas e praças do país. Em Paris, na Praça da República, reuniram-se cerca de 20.000. A dinâmica dessas manifestações revelou-se bem diferente do tradicional modelo de protesto. Não havia lideranças em destaque. Ainda que houvesse muitos estudantes, o público era diversificado, distribuído em várias faixas etárias. Ouviam-se diferentes idiomas, mas nada de microfone, palanque ou carro de som.

 

Os manifestantes se apropriaram da estátua que simboliza a República Francesa, no centro da praça, e nela projetaram mensagens de apoio e homenagem ao Charlie Hebdo, cantando palavras de ordem improvisadas, compartilhadas pelo restante do público. Canetas eram erguidas, velas acesas e pequenos cartazes exibidos: a luz contra a obscuridade. Num desses cartazes, reivindicava-se a nomeação de Cabu, um dos cartunistas mortos, para o Panteão. Nenhum símbolo de partido político foi notado. Fotos eram tiradas e logo compartilhadas nas redes sociais.

 

Verificam-se, nas reações ao atentado, diferentes atitudes. De um lado, demandas de mais repressão, de medidas punitivas e uma declaração de guerra. De outro, setores da sociedade civil se organizam e ocupam a Praça da República para defender o ideário do que representa aquele território simbólico. Essa dicotomia fica explicitada quando Marine Le Pen, da Frente Nacional, justifica a necessidade de um “debate” sobre o “fundamentalismo islâmico” por força do “medo” que ele instalaria na sociedade francesa. Em perspectiva contrária, uma das palavras de ordem repetida nas manifestações era: “não temos medo”!

 

A dicotomia, entretanto, parece por vezes se dissolver na convivência plástica de elementos diferentes, uma das características do tempo opaco e incerto da nossa contemporaneidade. Por exemplo, os mesmos conglomerados de mídia que dão voz aos pedidos de “medidas de exceção” exaltam, por meio de fotos e textos, a reação das ruas e praças.

 

Os fundamentalismos em ascensão das últimas décadas expressam uma mistura de arcaico e moderno. Eles alimentam e justificam sua reinvindicação identitária com a recusa da homogeneização globalizante do Ocidente, que seria responsável por boa parte das mazelas do presente. Entretanto, nesse movimento, não reabrem o futuro fechado pela crise do progresso, voltam-se para tradições inventadas.

 

Já começam a surgir paralelos entre o atentado ao Charlie Hebdo e aquele de 11 de setembro. Manchetes afirmam que a França nunca mais será a mesma. Também em relação a isso não há consenso: como podemos perceber neste século, nossas democracias podem “normalizar” o terrorismo, adotando seus métodos e criando uma estrutura operacional e institucional para justificar uma guerra contra o terror.

 

Entre política tradicional e manifestações espontâneas, entre a defesa de valores e a afirmação da liberdade, símbolos entram em disputa. O futuro ainda não se mostra nessas lutas. Se ele não aparece agora, quando virá? E como?

 

Cristiano Paixão é professor da Faculdade de Direito da UnB. Está em estágio pós-doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris)

 

José Otávio Guimarães é professor do Departamento de História da UnB. Doutor em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris)

 

Os autores são líderes do grupo de pesquisa “Direito e História: políticas de memória e justiça de transição” (UnB-CNPq)

ATENÇÃO – As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seus conteúdos. Crédito para textos: nome do repórter/Secom UnB ou Secom UnB. Crédito para fotos: nome do fotógrafo/Secom UnB.