OPINIÃO

Cristiane de Assis Portela é professora do Departamento de História e do Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais da Universidade de Brasília. Faz parte do grupo de pesquisa Cauim: interculturalidade e epistemologias contra-hegemônicas e do LABEH- Laboratório de Ensino de História, ambos da UnB. É coordenadora do projeto Outras Brasílias — ensino de história do Distrito Federal a partir de fontes documentais.

Cristiane de Assis Portela¹

 

Armas de Fogo e Maracás em um abril qualquer: notícias de resistência em meio a uma “política de terra arrasada” 

Leituras do Presente. Armas de fogo! Estes foram dias de dados e consternação

 

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou, neste abril de 2019, a 34ª edição do Caderno de Conflitos no Campo 2018, publicação que reúne dados de violência e conflitos trabalhistas no campo brasileiro, nos ajudando a compreender conjunturas que afetam povos indígenas, quilombolas, pescadores/as, extrativistas e outras comunidades que vivem em territórios de águas ou de terra. O número de conflitos no campo, registrados pela Comissão Pastoral da Terra, cresceu 4% em 2018 enquanto aumentaram em 35,6% as pessoas envolvidas. Destas, chama a atenção o número de mulheres envolvidas em casos de violência, o maior número em dez anos, vitimando 482. Dados estes que acompanham o crescente número de casos de violência contra mulheres registrados nos últimos anos e os alarmantes dados de feminicídio em contextos urbanos que desde o início do ano nos interpelam diariamente nos noticiários. Não são somente números, são mães, avós, filhas, lideranças, professoras, companheiras, parteiras, famílias, identidades coletivas que se fraturam. A CPT lembra que o número provavelmente é maior, já que estes são apenas os casos registrados. Quase metade dos conflitos (49%) ocorreu na Amazônia.

 

O número de famílias expulsas de forma violenta pelo poder privado teve crescimento de 59% em relação a 2017, enquanto famílias despejadas por ações judiciais cresceu menos, algo em torno de 6%. A maior parte destes casos concentra-se na região Norte (36,3% do total), mas está seguida de perto pelo Sudeste (35,6%). O relatório mostra que o número de assassinatos caiu significativamente – de 71 em 2017, para 28 em 2018, entretanto, a CPT analisa que em anos eleitorais há uma diminuição nesse tipo de violência. Entretanto, 2019 já registrou dez mortes violentas apenas nos quatro primeiros meses deste ano. Das 28 mortes no ano passado, 15 foram de lideranças oriundas de contextos comunitários. Em comunidades tradicionais, mulheres comumente são protagonistas na luta e sofrem as consequências da repressão patrocinada por latifundiários, grileiros e empresários, em ações executadas por jagunços ou pelo próprio Estado. De 2009 a 2018, 1.409 mulheres lideranças sofreram violências neste contexto. E sabemos que são crimes sub-notificados. Além dos assassinatos, ameaças de morte, tentativas de assassinato, tortura, estupros, ferimentos que têm abortos como consequência, prisões arbitrárias. Grande parte destas mulheres são camponesas sem-terra, mas muitas também são indígenas, quilombolas e agentes da pastoral. Não há dúvidas de que a política de flexibilização do porte de armas de fogo e a chamada “legítima defesa no campo”, caso se efetive, trará repercussões imediatas e trágicas para as populações que vivem no campo.

 

Rememorações do passado. Um abril qualquer em terras amazônicas, ou no Planalto Central...

 

Eldorado dos Carajás, quarta-feira, 17 de abril de 1996, 19 trabalhadores sem-terra são assassinados pela Polícia Militar do Estado do Pará. Esse fato trágico, ocorrido há 23 anos, tornou-se símbolo de luta e representação dos conflitos agrários que ainda hoje acontecem no campo brasileiro. No dia 20 de abril de 1997, por volta das 5h30 de um domingo, cinco amigos voltavam de uma noite de festa com um carro Monza preto, e na parada de ônibus da 703 Sul, atearam fogo na liderança pataxó Hã-hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos, à época com 44 anos. O Correio Braziliense noticia a morte depois de um dia de luta pela vida com a frase dita pelos jovens: “Foi só brincadeira”. Não nos esqueceremos jamais desses dias de abril! Assim como não esqueceremos de tantas lideranças indígenas assassinadas na luta direta ou indireta: xucurus, xakriabá, guarani, kaiowá, tupinambá, guajajara, xokleng, pankararu, krenak e tantas outras. Dados do CIMI indicam que um bebê manchinere no Acre foi o mais jovem dos 110 indígenas vítimas de homicídio em 2017, segundo o relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil.

 

Em comparação com 2016, quando foram 118 vítimas de assassinato, houve uma pequena redução. Roraima e Amazonas lideram com 33 e 28 casos, respectivamente. Apesar da pequena queda no total de mortes, o cenário traçado pelo documento demonstra que não há motivo para comemorar: 2017 foi um ano marcado por retrocessos nos direitos indígenas e pela eliminação sistemática de suas lideranças. Ainda não temos o relatório de 2018. Mas desde as últimas eleições, povos indígenas do país e seus aliados, aqui e no mundo todo, nos preparamos para o pior. Ouvi muitas vezes no ATL que “uma política de terra arrasada está em curso”. Ecoa a promessa de que “não haverá nem mais um centímetro de terra indígena demarcada”. Acreditamos que essa ofensiva possa ser detida desde que a sociedade civil, as instituições, o Judiciário e o Congresso, fortaleçam alianças em defesa do campo indigenista. Os próprios povos indígenas há muito nos ensinam sobre resistências, formas de mobilização e lógicas comunitárias inclusivas, tendo obtido importantes conquistas. As diretrizes adotadas pelo governo federal tanto com relação ao desmatamento, quanto à mineração e projetos de grande porte, bem como o desmonte da Funai, Incra, ICMbio e Ibama, consistem em um conjunto de medidas que já tem causado uma série de violações de direitos humanos que resultam em uma maior vulnerabilidade das lideranças ameaçadas, grande parte delas, mulheres.

 

Perspectivas de Futuro. Maracás! Estes também foram dias de resistência! Entre os dias 24 e 26 de abril de 2019, mais de 4 mil lideranças de povos e organização indígenas, mulheres e homens que representaram 305 povos, reuniram-se em Brasília para protestar contra as políticas do governo, expressar suas preocupações e fazer lembrar ao país o que significam estes corpos-territórios. Este ano, há mais motivos do que nunca para que esse Abril Indígena floresça! O Acampamento Terra Livre foi destes acontecimentos que nos nutrem de esperanças e reforçam a importância de que sejamos aliadas e sigamos juntos. Divulgado em 26 de abril, o documento final do 15º ATL apresenta reivindicações que dizem muito sobre a atual conjuntura. Suas palavras nos indicam caminhos de esperança na construção de um outro mundo:

 

“Realizamos este 15º Acampamento Terra Livre para dizer ao Brasil e ao mundo que estamos vivos e que continuaremos em luta em âmbito local, regional, nacional e internacional. Nesse sentido, destacamos a realização da Marcha das Mulheres Indígenas, em agosto, com o tema Território: nosso corpo, nosso espírito. Reafirmamos o nosso compromisso de fortalecer as alianças com todos os setores da sociedade, do campo e da cidade, que também têm sido atacados em seus direitos e formas de existência no Brasil e no mundo. Seguiremos dando a nossa contribuição na construção de uma sociedade realmente democrática, plural, justa e solidária, por um Estado pluricultural e multiétnico de fato e de direito, por um ambiente equilibrado para nós e para toda a sociedade brasileira, pelo bem-viver das nossas atuais e futuras gerações, da Mãe Natureza e da Humanidade. Resistiremos, custe o que custar!”

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¹Professora do Departamento de História e do Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais da Universidade de Brasília. Faz parte do grupo de pesquisa Cauim: interculturalidade e epistemologias contra-hegemônicas e do LABEH - Laboratório de Ensino de História, ambos da UnB.

Palavras-chave

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