OPINIÃO

José Carlos Coutinho é Professor Emérito da Universidade de Brasília, um dos principais pesquisadores da obra de Oscar Niemeyer e já recebeu título de Cidadão Honorário de Brasília.

José Carlos Coutinho¹

 

Yuri Gagarin, o primeiro cosmonauta, pouco depois de seu feito histórico, na condição de celebridade mundial, como parte do périplo propagandístico que lhe foi imposto em decorrência de sua façanha, passou algumas horas em Brasília, poucos anos após sua inauguração. Assediado por jornalistas ávidos por suas impressões sobre nosso feito histórico, declara de modo patético: “Brasília é uma cidade do futuro”. Na verdade, não havia nada de original na afirmação. Nada fez senão repetir um estribilho muito propalado por certa imprensa leiga e ufanista que se comprazia com esta ideia. Mas como foi dita por Gagarin, que já havia dito antes que “a Terra é azul”, a frase ganhou as manchetes, com ares de verdade inconteste.

 

Consta que, alguns meses depois, Lúcio Costa, convocado por uma comissão parlamentar que apurava fatos relacionados com a construção de Brasília, indagado sobre o que achava da lisonjeira frase de Gagarin, teria respondido: “Ora, o que entendem de cidades esses motoristas de foguetes?”.

 

Esta pequena anedota é apenas para dizer que, apesar do que se poderia ou ainda se possa acreditar, Brasília não é, não era e nunca pretendeu ser uma cidade do futuro. Ao contrário, seu plano urbanístico está impregnado de substância histórica, desde os eixos cardiais (cardus e decumanus) da cidade romana, passando pela monumentalidade áulica das perspectivas barrocas, pela retórica de Versalhes e Karlsruhe, pelo mall de Washington, pela cidade linear de Soria y Mata, pela cidade jardim de Howard e pelos preceitos de Le Corbisier e sua Ville Radieuse. Isso não chega a surpreender, sabendo-se que Lúcio Costa era detentor de uma respeitável bagagem teórica formada por tradições culturais europeias. Mas Brasília, em si, é uma cidade do presente, como a querer dizer, com seu plano, que certas soluções são possíveis já, no Brasil de hoje, desde que se corrijam injustiças e contradições que as vêm impossibilitando. Se isso é uma utopia, então viva a utopia. Por outro lado, se o país não superar seus mecanismos de exclusão social, econômica e política, eles não cessarão de se fazerem presentes na vida urbana e evidentes na aparência das cidades, pois, afinal, não são elas a materialização visível dos invisíveis processos sociais, políticos e econômicos?

 

Brasília é uma cidade brasileira e, como tal, não poderia deixar de apresentar o mesmo quadro de patologias do país que a gerou. Superadas a infância e a adolescência, entra agora na fase adulta e vai ficando, cada vez mais, com a cara do pai. É o futuro que chegou sem que ela tivesse se preparado para enfrentá-lo.

 

Os problemas se avolumam e as perspectivas são sombrias. O crescimento da população, que já atinge 2 milhões de habitantes hoje, mas que certamente chegará aos 3, 4 ou mais milhões de habitantes em um futuro incerto, somando a uma perversa distribuição no território, resultante de uma contínua centrifugação dos segmentos mais pobres da população causada pelas contínuas desigualdades socioeconômicas e pela demagogia política de administradores oportunistas e despreparados, constatado ainda o baixo potencial de geração de empregos para esta população crescente, fazem a transformação do sonho do passado em pesadelo vivo, num futuro muito próximo.

 

Não é difícil prever que a combinação de fatores antagônicos como a concentração de renda per capita mais alta do país nas mãos de 20% da população que habita a Brasília tombada, cercada pelos restantes 80%, em que o desemprego vai produzindo um cada vez maior contingente de excluídos, tende a fazer desta cidade uma das mais inseguras e violentas do país, nas próximas décadas.

 

Em resumo, o futuro chegou para Brasília e o que ele nos revela não é muito animador. Ao contrário, nos enche de preocupações e temores. Mas tudo à frente também é futuro. Resta-nos discutir o que faremos desse futuro. Ou o que ele fará de nós…

 

(Texto originalmente produzido como uma reflexão sobre os quarenta anos de Brasília)

 

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¹Professor Emérito da Universidade de Brasília, é um dos principais pesquisadores da obra de Oscar Niemeyer e já recebeu título de Cidadão Honorário de Brasília.

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