OPINIÃO

Professora do Departamento de Enfermagem da Faculdade de Ciências da Saúde/UnB. Coordenadora do núcleo de pesquisa Nesprom/Ceam/UnB.

Maria Raquel Gomes Maia Pires1 

 

As estatísticas da violência contra a mulher e do feminicídio no Brasil são alarmantes, especialmente entre as negras, pobres e de baixa escolaridade. Nos noticiários, nas pesquisas e em produções diversas se constata a magnitude das atrocidades cometidas. Sabidamente os homens e os parceiros íntimos são os principais agressores, revelando traços crus da violência doméstica que temos de enfrentar. A impunidade dos crimes contra as mulheres deixa marcas indeléveis, a despeito dos avanços trazidos pela Lei Maria da Penha. Ressoa aqui, acolá e em casos semelhantes a inquietante pergunta: “Quem matou Marielle Franco?”

 

Não bastassem as violências visíveis, o machismo, o sexismo, a homofobia e o recrudescimento do conservadorismo na cena política brasileira acentuam as opressões invisíveis na sociedade, como aquelas baseadas na condição de gênero, interseccionadas pela raça e pela classe social. A naturalização de práticas discursivas autoritárias, regidas por condições binárias do que seria “ser mulher” ou “ser homem”, ecoa nas atuais descomposturas de vozes públicas do governo federal. Nisso, a desigualdade social entre homens e mulheres (ou entre as muitas performances de gênero, sexo e desejo socialmente construídas) assume contornos indigestos, em meio aos riscos de retrocessos históricos nos direitos das mulheres.

 

Diante de tão intrincado cenário de violação da condição feminina, não seria por demais descabido perguntar pelo que pode o lúdico no enfrentamento da violência contra a mulher. Entre os desafios que precisamos transpor rumo à cidadania, que vez teria o lúdico nas nossas práticas políticas? Em meio aos gritos de indignação coletiva, restaria algum espaço para as muitas manifestações do jogo e do jogar, nos nossos gestos públicos? Diante dos complexos problemas para o avanço das políticas para as mulheres, que brecha restaria para a ludicidade nos nossos discursos pela equidade de gênero?

 

A noção de jogo insere uma perspectiva agônica que repele qualquer semântica conceitual mais fixa, por coibir sua dinâmica disruptiva, transitória e irreverente. Ademais, as premissas acerca do poder do lúdico no enfrentamento da violência contra a mulher – ratificadas à revelia da ambivalência que o caracteriza – incorrem em restrição das possibilidades transgressoras do próprio jogo.

 

Entre as muitas maneiras de subsumir a fluidez de sentidos propiciadas pelo lúdico, sobressaem aquelas que o concebem como mero “instrumento” educativo, tal qual os “jogos sérios”, sisudamente contidos pelas “evidências científicas”. Ao limitar a descontração irreverente do lúdico aos ditames do “sério”, as produções científicas hegemônicas disciplinam o que há de mais interessante no jogo: o seu caráter autônomo, espontâneo, ambíguo e incerto.

 

As características inventivas e libertárias do jogo dialogam com a educação reflexiva e crítica, como contraponto às abordagens pedagógicas tradicionais. Se os discursos e atos em defesa da dignidade das mulheres se fortalecem com processos formativos voltados para a cidadania, a ambiência lúdica, ao mobilizar sentidos e afetos recônditos, possibilita as experiências imaginativas do pensar autônomo. No jogo, uma vez tencionado o mundo empírico com as facetas fictícias do imaginário, afrouxa-se a fruição criativa das armadilhas do conhecimento utilitário. No jogo irrequieto entre a exceção e a regra de um mundo sem esperanças, abrem-se brechas para as possibilidades, onde antes sobravam “realidades”. Como ricas expressões da cultura, o jogo produz distintas formas de vida - na mesma medida em que pode se aprisionar ou se libertar nelas.

 

Isso posto, o lúdico capaz de se contrapor, resistir e enfrentar as muitas formas de opressões contra as mulheres se reveste tanto nas práticas políticas agonistas, como na sedução do belo, em inspirações estéticas diversas. Noutras palavras, o jogo se recria na espontaneidade combativa do movimento de mulheres – em meios aos brados de “Marielle, presente!!” e nas performáticas maneiras de dizermos: “Ele não!!”. Da mesma forma, nas searas onde o real, a ficção e o imaginário sambam, são lúdicas as formas carnavalescas da Mangueira, ao convidar o Brasil a “ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês!, pois “na luta é que a gente se encontra!”.

 

A despeito da insipidez de um “real” que insiste em nos paralisar, talvez seja a hora de crer um pouco mais nas possibilidades lúdicas – não como “instrumento” educativo idealizado, mas como um imponderável tornado crível –, especialmente se flexibilizarmos nossos ceticismos realistas.

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Professora do Departamento de Enfermagem da Faculdade de Ciências da Saúde/UnB. Coordenadora do núcleo de pesquisa Nesprom/Ceam/UnB.

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