OPINIÃO

Tatiana Lionço é professora do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia e Coordenadora do Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília. Graduada, mestre e doutora pela UnB. Tem se dedicado ao estudo do fundamentalismo religioso na política nacional, das redes de proteção para a comunidade LGBT universitária e dos processos de subjetivação e sua relação com gênero e sexualidade.

Tatiana Lionço

 

Orgulho de sua gente faria muito bem à UnB: somos ou não somos todo/as desviado/as?

 

No dia 28 de junho se comemora internacionalmente o Orgulho LGBT, em alusão à Revolta de Stonewall, ocasião em que travestis, lésbicas, gays e outras dissidências sexuais e de gênero se revoltaram contra os reincidentes abusos repressivos da polícia no bar que frequentavam e entraram em confronto direto com a força policial nas ruas de Nova Iorque, em 1969. Este ano – 2018 –  também é emblemático para a luta por reconhecimento dos direitos da população LGBT, pois se comemoram 40 anos da história do movimento social organizado no Brasil, que tem como marco inaugural o surgimento do Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, em São Paulo, em 1978. A data é comemorada no mundo inteiro como potência da reviravolta operada pela revolta: da opressão sofrida por ser essa gente que “desvia da norma”, se levanta um movimento que se afirma a si mesmo e que passa a sair da sombra e ganha as ruas, com orgulho de si.

 

A UnB é uma instituição ambivalente no que se refere à discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Apesar de dispor de normativas institucionais de proteção e afirmação de direitos para estes segmentos da comunidade universitária, pessoas LGBT sofrem preconceitos e discriminações cotidianas no contexto institucional. Grande parte da comunidade universitária desconhece que a UnB já se posicionou no combate à LGBTfobia e agentes públicos no exercício da função têm violado direitos e incorrido em práticas de violência simbólica contra esta comunidade.

 

É importante ressaltar que a UnB, por meio da Resolução da Reitoria n. 0154/2012, cria o Programa de Combate à Lesbofobia, Homofobia, Bifobia e Transfobia da UnB, o que implica todos e todas as docentes, mas também servidore/as técnico/as, trabalhadore/as terceirizado/as, voluntário/as, visitantes, estudantes de graduação e pós-graduação, bem como pesquisadores vinculados, ou seja, toda a comunidade universitária, a se corresponsabilizar neste processo de ressignificação sobre as representações desqualificadoras que vulnerabilizam sujeitos ao prejuízo social, institucional e pessoal. Ainda, por meio do Ato n. 488/2013, a Reitoria também instituiu a Diretoria da Diversidade, sendo uma de suas coordenações destinada ao acolhimento e atendimento de demandas da comunidade LGBT da UnB. Esta é uma primeira questão fundamental: precisamos todos nos informar sobre as normativas e políticas institucionais e buscar cumpri-las. Caso não consigamos compreendê-las, buscar meios, junto a pessoas qualificadas, de aprimorar nossos processos permanentes de formação e qualificação para o cumprimento da função pública com ética democrática. A questão é que, na UnB, se está desviando da norma.

 

O processo de escuta permanente da comunidade LGBT da UnB, seja por meio de atividades em parceria com a Diretoria da Diversidade, seja por meio de atividades do Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero/CEAM, permitiu uma visão abrangente do que se passa com esta comunidade na nossa universidade. Temos mediado rodas de conversa nos mais variados contextos, incluindo diálogos entre discentes e docentes em cursos de Engenharias, Museologia, Letras, Artes Cênicas, Gestão de Políticas Públicas, Comunicação Social, Direito, Biologia, Psicologia, Ciências Ambientais, Ciências Sociais, Medicina entre outros. Essas rodas de conversa trataram temas sobre determinantes sociais das desigualdades e violências institucionais, tais como LGBTfobia, sexismo, racismo, assédios, violência doméstica e seu impacto na vida acadêmica, entre outras questões. Parcerias com coletivos estudantis e outros projetos de extensão também foram estabelecidas, tais com a Corpolítica, o (R)Existir, o Centro de Convivência de Mulheres, a Roda das Minas, entre outros.

 

O que temos escutado, predominantemente, é um processo de epistemicídio e de dificuldade de permanência de estudantes LGBT. O que quero dizer com epistemicídio é que o próprio propósito da universidade tem sido cerceado em função do preconceito docente em relação à existência de sujeitos homossexuais, lésbicas, travestis e transexuais na universidade, e que, caso tais sujeitos porventura existam por algum equívoco do sistema, não deveriam pensar sobre o fato de existirem socialmente. Estudantes relatam serem desincentivados, impedidos e até mesmo desacreditados em suas intenções de estudo e pesquisa sobre condições de vida LGBT a partir de alegações de que estudos de gênero não teriam base científica, ou que estudar questões que remete a si mesmo careceria de cientificidade. Outro ponto fundamental que gostaria de destacar é que a polícia da epistemologia ainda não foi instituída por ato da reitoria e que talvez possamos concordar que existam divergências epistemológicas que não sejam superáveis, e que portanto o respeito à diversidade epistemológica é um dos pilares da democracia e da ética da pluralidade em nossa universidade. Caso estudantes procurem por tais temas novamente, podem indicar a existência do NEDIG/CEAM e nós teremos enorme satisfação em indicar docentes na universidade que poderiam acompanhar processos de orientação de iniciação científica e pós-graduação, na medida do possível, pois somos poucas pessoas trabalhando esses temas, mas existimos e resistimos e estamos sempre ávidas por parcerias.

 

Temos escutado estudantes em sofrimento, pois se sentem silenciadas e menosprezados em suas tentativas de vocalização de críticas sociais a injustiças relacionadas a LGBTfobia em discussões em sala de aula, grupos de estudos, pesquisas e estágios, mas que são significados por pessoas que não são LGBT como sujeitos que estão apenas falando de si próprio/as. Talvez as pessoas LGBT estejam mais sensíveis a escutar e a sentir o que outras pessoas LGBT estejam sofrendo na sociedade, talvez tais sujeitos tenham uma perspectiva privilegiada sobre este fenômeno social de prejuízo no gozo de direitos ou mesmo na precarização das vidas. Estariam estes estudantes LGBT desviando o foco do que realmente interessa? Ou estariam colegas e docentes desviando o foco do enfrentamento da LGBTfobia?

 

Gostaria de me deter em alguns episódios para pensarmos sobre violências simbólicas. Primeiramente, peço licença para perguntar com sinceridade qual universidade vocês disputam. Faço a pergunta de propósito, para que possamos continuar pensando tendo a certeza de que a UnB não está pronta e também para que reconheçamos que estamos aqui numa espécie de batalha. Não fosse assim não estaríamos tão cansadas e machucadas. Observem. Não sei se é de conhecimento de todas e todos, mas há professores que denunciam estudantes à polícia. O caso era performático. Queer: se preferirem a tradução adequada à episteme, seria desviante, mas aquela afeita ao senso comum é a bicha demasiada bicha, que passou a ponte para o lado da mulheridade feminina. Ocorre que, logo após a polêmica performance, que integrava programação institucional do Projeto Tubo de Ensaios que a UnB realiza há mais de década, policial bateu na porta residencial de estudante, lá na periferia do Distrito Federal. Poucas semanas depois, era lá no Reino Unido que a trajetória acadêmica dela se desdobrava, a única latino-americana contemplada com bolsa internacional. Voltou. Na UnB difícil é a permanência, coisa de travesti. Nunca entendi muito bem se porque muito mau olhada por aqui ou muito ovacionada por tanta gente desviada e transviada mundo afora. A UnB nem percebe quem anda pelos seus corredores, gramados, esquece de dar voz para Rosa Luz. Ainda bem que um dia eu passei microfone, no Anfiteatro 10.

 

Outro caso que me lembrei para contar para vocês foi o do ataque fascista que a universidade sofreu em setembro de 2016, em que pessoas entraram no ICC norte explodindo bombas caseiras gritando entre outras ofensas que estudantes eram viados. Vocês sabiam que houve um estudante que foi denunciado à polícia? Não um dos membros do bando que atacou a universidade: um dos estudantes atacado foi denunciado. Um estudante homossexual negro, sentindo-se bastante ofendido, mostrou a bunda para os agressores. Num ato típico de bundalelê, foi denunciado à polícia. Mais uma vez, estamos diante da criminalização de estudantes LGBT na UnB, talvez por força da moral e do bom costume racista e homofóbico que ainda não foi suficientemente objeto de nossa crítica. Ecoando tais preocupações, me recordei que no dia da virada lésbica, chamamos a segurança para intervir sobre um trote que estava atrapalhando a atividade cultural que estava sendo realizada no Teatro de Arena e, curiosamente, os agentes confundiram e acreditaram que a intervenção deveria ser sobre a atividade que a própria Diretoria da Diversidade estava realizando, em parceria com movimentos sociais e coletivos estudantis. Tais coincidências são inquietantes, mas devem nos trazer a convicção de que há um processo de atribuição de ilicitude a atividades de gente desviada.

 

Gostaria ainda de dizer que trabalhar com temas como dissidências sexuais e de gênero é estar vulnerável a prejuízos morais e precisamos mudar esta cultura discriminatória. Eu senti isso muitas vezes na pele, pois tenho sido alvo de ataques morais como uma estimuladora do homossexualismo infantil e que faria apologia da pedofilia, quando não exemplo de anticristo, por ação direta de autoridades públicas do Congresso Nacional nos últimos anos, e como se não bastasse tais violências associadas ao exercício profissional, o silêncio institucional é mais uma forma de fazer valer a imposição da norma diante da qual a dissidência seria passível de aniquilamento. É inadmissível que uma instituição como a UnB, que protagoniza produção de conhecimento na área de gênero bem como políticas institucionais inclusivas, permaneça vulnerabilizando sua própria comunidade ao preconceito e à precarização das vidas. Nós temos muito orgulho por haver protagonizado, no Brasil, uma produção normativa na Psicologia que antecedeu, historicamente, a despatologizacão da transexualidade em relação aos marcos oficiais da saúde, que felizmente por ora também podemos celebrar num sentido mais abrangente pois fora anunciada a retirada da transexualidade dos transtornos mentais há dez dias pela Organização Mundial da Saúde. Orgulho também deveria ter a UnB, pois sediou a defesa da primeira tese de Doutorado sobre transexualidade nesta perspectiva no país, da professora Berenice Bento, bem como a primeira tese de Doutorado em Psicologia do país sobre o tema, de minha própria autoria, relacionada também a toda esta longa trajetória de luta que hoje podemos celebrar.

 

É urgente que todas e todos tenham orgulho de acolher uma travesti em sala de aula, que acompanhem trabalhos acadêmicos em diferentes áreas de conhecimento sobre questões LGBT pois tais segmentos populacionais estão inseridos em todos os contextos sócio-institucionais e estamos em tempos de defender a democracia. UnB: tenha orgulho de suas professoras desviadas, de seus alunos desviados! Desvios de olhares, desvios de conduta e desvios de fé não cabem no momento histórico em que nos encontramos. Vocês, que fazem questão de não se reconhecer no desvio, façam o favor de se ajeitarem nesses últimos três que mencionei. Nós, pessoas desviadas, somos agentes de transformação social. Temos muito a contribuir. Somos parte da universidade. Merecemos ter nossa voz considerada e respeitada.

 

Para finalizar, gostaria ainda de provocar a comunidade acadêmica a refletir sobre o sentido mesmo de comunidade acadêmica. As políticas institucionais e os espaços instituídos para deliberação precisam ser arejados por meio de processos criativos e que promovam a democratização das participações diretas. Com isso quero dizer que muitas políticas não estão funcionando, entre as quais o Programa de Combate à LGBTfobia da UnB. Uma das estratégias que poderia alavancar sua implementação poderia ser a conclusão do Plano de Respeito à Diversidade, já previsto nas Normas de Convivência da UnB. Infelizmente, seu processo de construção se deu dentro dos gabinetes e hoje se encontra parado, e sabemos que políticas construídas assim não funcionam. Políticas de gabinetes não funcionam mais. Há outras formas de construir políticas, de modos participativos e com protagonismo da comunidade. No caso, a comunidade LGBT já está fazendo muita coisa por si e a Diretoria da Diversidade tem estabelecido diálogo permanente com esta comunidade, mas é preciso ampliar o diálogo institucional. Publicação de atos e agendamento de comissões, pouco importa, por aí não se avança. Especialistas não têm esse poder, pois não sabem a dor do povo, não conhecem as palavras da comunidade. Como estabelecer diálogo? O que precisa mudar? Perguntem à comunidade.

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