OPINIÃO

Dioclécio Campos Júnior é professor emérito da Universidade de Brasília, doutor em Pediatria e membro titular da Academia Brasileira de Pediatria.

 

 

Dioclécio Campos Júnior

 

O panorama planetário da atualidade é preocupante. Generaliza-se a banalização da violência sob todas as formas e nas distintas partes do mundo. Acreditava-se que o avanço da tecnologia de comunicação virtual fosse vencer as fronteiras e uniformizar o grau de consciência da humanidade indispensável ao seu progresso evolutivo. Ledo engano, porque a análise formulada se limitou à crença nos mecanismos tecnológicos realmente inovadores. Não se considerou a serviço de quem estariam sendo implantados, fortalecidos e expandidos no mundo inteiro. Tampouco se identificou o vigor imperial dos interesses econômicos, articulados pelas elites dominantes, que caminham soltos e completamente intocáveis ao longo das eras. Consolidou-se a desigualdade, fortaleceu-se a injustiça, perpetuou-se a humilhação. A cultura da mentira passou a surfar nas mórbidas ondas de tenebrosos mares nunca dantes navegados.


O consumismo se infiltrou na mente coletiva, subordinando-a ao deslumbramento que os produtos e mercadorias mistificados são concebidos para despertar. Vive-se o êxtase do modismo que uniformiza as aparências individuais. Os cidadãos se convertem, sem o perceberem, em propagandistas ingênuos que se regozijam em divulgar marcas e frases marqueteiras estampadas em vestes, bonés, tênis. É um condicionamento comportamental que ultrapassa todo e qualquer limite da ética, cujos princípios são ignorados pelo perfil empresarial dos novos tempos. Mochilas cada vez maiores e pesadas, cheias de artigos desnecessários à real qualidade de vida, incorporam-se à coluna dorsal do corpo humano. É a cifose estética do escravismo consumista que seduz as novas gerações. Até as crianças, na mais tenra idade, são iniciadas na deplorável falácia e exploradas como bebês-propaganda.

 

Em outras palavras, o mais alto investimento empresarial dos novos tempos tem sido feito no corpo, em prejuízo da alma. Na matéria, em detrimento do espírito. Na prática sexual, sem o ingrediente do amor. No automatismo robótico que desfaz o pensamento. Na imagem que erradica a escrita. No barulho ensurdecedor que inviabiliza o silêncio. Nas academias feitas para robustecerem os músculos em ambientes nada saudáveis. Nos pets que se sobrepõem às crianças. Nos espetáculos que ganham a dimensão de tremores da terra. Nas armas de fogo que sepultam a paz. No ensino que não educa. Na diversão que exulta impulsos e não respeita posturas. Nos noticiários que escondem a verdade para defender interesses. Na demolição do humanismo em benefício do imperialismo.

 

A interação pessoal perdeu o sentido, prevalecendo a nova imagem corporal de cada um, praticamente igual à de todos. Amizade passa a ser a distância. Abraço e beijo prevalecem na versão eletrônica. Educação se converte em teleconferência. Encontros já não são presenciais. Os olhares são fixados às telas, não à realidade. A leitura e a escrita restringem-se a mensagens telegráficas. Livros deixam de existir, perdendo espaço para vídeos que roubam o exercício da reflexão sem a qual desparece o ato de pensar. A era do corpo, construída no universo de objetivos materiais imediatistas, só foi possível porque reprimiu a alma condenando-a aos desvãos do obscurantismo escabroso de mistificadoras ideologias.

 

A alma é a energia que harmoniza órgãos e sistemas do organismo. É a única fonte do livre pensamento. É a gênese de afeto, ternura, respeito ao próximo, serenidade pacífica, educação espontânea e autêntica, sentimentos humanos verdadeiros. Traduz a plena sintonia com os valores morais e éticos, assimilados na mais absoluta humildade reverencial. Não é agressiva. Não exerce a violência. Não pratica o terror. Expressa a essência cósmica da noosfera, a substância espiritual que paira acima das camadas terrestres. A censura dos pendores anímicos de cada um desmonta o conceito do belo para que prospere a ditadura da imagem, em benefício dos comandos puramente tecnológicos. A repressão da alma é a censura da arte legítima e sublime substituída pela pobreza da cultura do espetáculo.

 

Sem a sua mente natural, o corpo se transforma em mero objeto, inteiramente artificializado por sístoles e diástoles econômicas, refém inconsciente de incoerências que lhe são impostas para sobreviver desumanizado. É autômato desprovido da capacidade perceptiva que a espécie perdeu sem se dar conta. A sociedade humana não pode mais ser enganada com tamanha facilidade. O corpo sem alma não pulsa, é dominado. Não vive, apenas vegeta.

 

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Publicado originalmente no Correio Braziliense em 21/09/2017.

 

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