INTEGRAÇÃO

Seminário marcou o início de parceria latino-americana, que se estende a Colômbia e México. No Brasil, Universidade de Brasília será pioneira na oferta de formação na área

 

Um caso especial chama a atenção na mídia brasileira e internacional nos últimos meses: a crise econômica da Venezuela tem levado milhares de famílias a buscar melhores condições de vida em países vizinhos. Desde 2015, mais de dois milhões de venezuelanos já deixaram o país. Pelo menos 50 mil deles, quase 2%, atravessaram a fronteira brasileira. Os dados são da Organização Internacional de Migração (OIM).

 

Tensões e conflitos causados por ondas migratórias são cada vez mais frequentes em todo o mundo. Para discutir dilemas e desafios das políticas públicas em prol dos imigrantes, a Faculdade de Direito (FD) da Universidade de Brasília sediou o seminário internacional Ação humanitária e contexto latino-americano: migrações e outras perspectivas desde a Colômbia, México e Brasil

Seminário Noha sobre ação humanitária marcou início de parceria latino-americana entre UnB e instituições de Colômbia e México. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Realizado nos dias 4 e 5 de outubro, o evento marcou o início da cooperação acadêmica, no âmbito da América Latina, em torno da Rede de Ação Humanitária – Network on Humanitarian Action (Noha). Além da UnB, também integram a rede regional o Colégio de México (Colmex) e a Pontificia Universidade Javeriana, da Colômbia.

 

Organizadora do evento, a professora Loussia Felix afirmou que este foi o primeiro passo de uma parceria que será consolidada a médio e longo prazo. “A proposta do seminário foi aproximar as instituições dos três países e discutir como poderá ser constituído o campo no Brasil.”

 

“A ideia é criar uma rede de expertise em torno das emergências humanas complexas, fenômeno que tende a crescer cada vez mais, seja motivado por desastres naturais seja pela ação humana seja por situações de vulnerabilidade social, especialmente em conflitos armados internos ou internacionais", explicou. A Noha já conta com oferta de mestrado e capacitação multidisciplinar a graduados de áreas que buscam formação universitária para intervir nesses contextos.

 

Como na UnB ainda não há um curso específico na área, a intenção é oferecer capacitações, presenciais ou a distância, em diferentes faculdades e institutos. “A ação humanitária é uma área interdisciplinar de atuação profissional, que envolve diferentes campos do conhecimento, como Engenharias, Medicina, Direito, Antropologia, Relações Internacionais, entre outros", apontou Loussia.

 

Com ampla experiência em programas e projetos voltados à ação comunitária, a diretora-executiva da Noha, Sophie Borel, acredita que o problema dos fluxos migratórios é crescente e global. “Precisamos ampliar as perspectivas e possibilidades de atuação entre a Europa e demais nações”, disse. Ela lembrou os 25 anos da Declaração dos Direitos da Minoria, completados em 2017.

 

Durante a abertura do seminário, a reitora Márcia Abrahão afirmou ser uma honra para a Universidade receber o primeiro encontro da rede na América Latina. “Aqui apoiamos os estudantes refugiados, em um esforço de integrá-los à comunidade”, disse, em menção ao compromisso institucional com grupos minoritários.

Luis Fernando Múnera (Javeriana), Mamede Said (FD/UnB), reitora Márcia Abrahão, Sophie Borel (Noha) e Fernando Nieto (Colmex) participaram da mesa de abertura do evento. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Ao apresentar aos visitantes os valores da Universidade de Brasília, a reitora relatou um pouco da história da instituição, que sempre esteve pautada em preceitos democráticos. “A UnB veio para romper barreiras; foi pioneira no país ao implantar o sistema de cotas para negros e tem ampliado cada vez mais a oferta de vagas para os indígenas.”

 

COOPERAÇÃO – Durante os dois dias de evento, pesquisadores e autoridades das universidades do México e da Colômbia participaram dos painéis de debate. Docente associado do Colégio de México, Fernando Nieto ressaltou o espírito de colaboração e a esperança. “São eles que permitem uma contribuição ativa para a solução dos problemas públicos. A direção humanitária tem sido muito importante para guiar as ações institucionais”, defendeu.

 

Também esteve presente o diretor da Faculdade de Ciências Políticas e Relações Internacionais da Pontificia Universidade Javeriana, Luis Fernando Múnera. “Em um mundo cheio de conflitos, sentar ao lado em uma mesa para diálogo é simbólico; demonstra respeito”, refletiu. A universidade colombiana já trabalha com a Noha desde 2004. “Os estudantes têm cada vez mais interesse em investigar a área. Desde 2006, várias pesquisas têm sido realizadas sobre os conflitos armados”, exemplificou Múnera.

 

As discussões do seminário atraíram estudantes de graduação e de pós-graduação de diferentes áreas da UnB. “Tivemos um grande número de participantes e um público bastante interessado em todos os encontros. Vamos disponibilizar o material das apresentações na internet e será organizada também uma publicação do evento”, garantiu a professora Loussia Felix.

 

Fernanda Garcia é mestranda em Estudos da Tradução. Sua motivação em participar do encontro foi justamente entender a perspectiva brasileira e a política de asilo ao refugiado. “Faço pesquisa com intérpretes nas entrevistas de solicitação de refúgio. Eu trabalho com o papel do intérprete como uma figura de auxílio na garantia dos direitos humanos para esses imigrantes”, contou.

 

O ESTRANGEIRO – A abertura foi marcada pela conferência da professora da Universidade de São Paulo (USP) Deisy Ventura, que falou sobre Ações humanitárias, mobilidade humana e dinâmicas migratórias. Antes de tratar especificamente do tema, a jurista abordou como nativos costumam encarar o estrangeiro. “Os estrangeiros não estão bem integrados à humanidade, ocupam a periferia e muitas vezes estão à margem da sociedade”, frisou. Sob seu ponto de vista, a desqualificação do estrangeiro e os estereótipos criados assustam o imaginário popular.

Docente da USP, Deisy Ventura é especialista em relações internacionais, com foco em migrações. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Sobre as diferenças entre migrantes e refugiados, Deisy lembrou que aqueles que solicitam refúgio não podem voltar a seus países, seja por questões étnicas, sociais ou religiosas. No entanto, para a pesquisadora, a linha que separa esses conceitos é muito tênue e pouco clara.

 

“São fenômenos complexos e graves. As pessoas colocam-se em perigo iminente ao atravessar países, desertos e mares, por uma diversidade de fatores.” Por isso, a professora prefere falar em mobilidade humana, que compreende tanto a migração quanto o refúgio.

 

Informações apresentadas pela convidada mostram que a maior parte da circulação de pessoas no mundo ainda se deve ao turismo e negócios. De acordo com a Organização Mundial de Turismo, dois terços das pessoas em todo o mundo nunca saíram da sua nação de origem. O fenômeno da migração atingiu apenas 3,3% da população mundial. Além desses dados, a docente abordou vários mitos sobre os deslocamentos forçados.

 

Segundo ela, a maioria dos imigrantes vive na Ásia, e não em países nórdicos, como muitos pensam. Em 2017, o maior fluxo de migração foi entre países do hemisfério sul, correspondendo a 38%, segundo dados da ONU. Os países que mais acolhem refugiados no mundo são Turquia, Uganda, Paquistão e Irã.

 

INDIFERENÇA – Após a exposição, Deisy Ventura indagou o porquê de um discurso tão grave relacionado ao tema. “Não há invasão, o indivíduo não tem escolha. Estamos vivendo a globalização da indiferença”, opinou. Para ela, há uma associação das palavras risco, medo e perigo ao imigrante, assim como se associa a ação humanitária à caridade, compaixão e piedade. “A migração não aumenta a criminalidade; acentua a diferença cultural e social.”

 

Para ela, a proteção aos migrantes e refugiados é negligenciada simplesmente porque se opõe às políticas de contenção migratória. Quanto à situação da Venezuela, por exemplo, ela questionou por que o Brasil reconhece a Venezuela como ditadura, mas não considera a condição do refugiado venezuelano. “É uma distorção das políticas migratórias. Não é só questão de posicionamento político; trata-se de pessoas, famílias que precisam de assistência”, alertou.

Professora Loussia Felix tem imigrantes na família e espera que o Brasil continue sendo um país acolhedor. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Após a palestra, houve debate entre pesquisadores de universidades participantes, plateia e palestrante. Estudante do primeiro semestre de Direito, Gabriel Figueira Andrade comentou sobre a política do medo e a incitação ao ódio nos discursos dos candidatos a cargos políticos nesta eleições. 

 

“Espero que palestras como essa possam conscientizar a população, porque não sei o que está acontecendo com o meu país. O elo, que era a empatia, está a cada dia se desfazendo. A gente vai voltar ao estado de guerra, de uns contra os outros?”, questionou.

 

Para Deisy, a Lei de Migração (nº 13.445/2017) é um marco importante, mas é preciso avançar mais. O caminho seria o espaço público de diálogo e o engajamento de sujeitos políticos. “Quem defende direitos aceita as diferenças”, concluiu.

 

O evento foi encerrado com o depoimento pessoal da professora Loussia Felix. Neta de imigrantes, sua avó veio da Líbano em busca de uma vida melhor. “Aqui, ela aprendeu a ler e escrever na língua portuguesa e constituiu sua família. Espero que esse mesmo país que a recebeu há um século ainda seja capaz de acolher os que chegam ao Brasil movidos por diferentes razões.”

 

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