OPINIÃO

Marcos Aurélio Fernandes é professor do Departamento de Filosofia. Possui graduação em Filosofia e Teologia, doutorado pela Pontifícia Universidade Antonianum (Roma). Dedica-se à pesquisa na área de fenomenologia, de filosofia medieval, de filosofia da religião e filosofia da educação. É autor de A clareira do ser (Editora Daimon) e de vários capítulos de livros e artigos na área da filosofia.

Marcos Aurélio Fernandes

 

Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece, principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo¹.

 

Esta fala de Riobaldo, em Grande Sertão; Veredas, traz à luz o relacionamento entre brasilidade e religiosidade. Para Guimarães Rosa, brasilidade é um modo de ser, que consiste num pensar-sentir, que segue não a lógica da razão, mas sim a sabedoria que nasce do coração. Para este modo de sentir-pensar, religião é um assunto poético, isto é, uma experiência criadora da linguagem. Para esta experiência cordial, isto é, a experiência do mistério, que está na raiz das realizações plurais da religiosidade, todas as diferenças de fé, de crença e de consciência religiosa podem ser acolhidas em suas especificidades, respeitadas, sim, amadas, mais que toleradas.

Desde o projeto de lei de 7 de janeiro de 1890, passando pelas diversas Cartas Magnas até a Constituição vigente, de 1988 (artigo 5º, inciso VI), a liberdade consciência e de crença, incluindo a de culto, deve ser garantida pelo Estado brasileiro. Hoje, esta garantia deve ser cada vez mais efetiva, sobretudo face ao crescimento do fundamentalismo religioso, que se manifesta de modo especial nas perseguições às tradições religiosas de matriz afro-brasileiras, o que denuncia o racismo arraigado na sociedade brasileira.

O dia da liberdade de cultos nos coloca, hoje, face a um desafio que permeia toda a nossa vida contemporânea, em toda a terra. De que desafio se trata? A nosso ver, trata-se da novidade da história que está em porvir: aprender que a história não se faz com a exclusão das e contra as diferenças, que é a diversidade humana que cria a liberdade na e da história. Na história em geral, e no campo das religiões em especial, não existe direito exclusivo nem reserva de direito. Na história, todo o direito é coletivo, plural, difuso, porque provém da capacidade de diferenciação entre os seres humanos.

A propósito, o pensador judeu Martin Buber, em seu livro “O caminho do homem” escreveu algo que todas as religiões abraâmicas, nunca deveriam deixar esquecido:

 

Estamos aqui na presença de um ensinamento que se baseia sobre o fato de que os seres humanos são não iguais por natureza e que portanto não carece de torná-los. Todos os homens têm acesso a Deus, mas cada qual tem um acesso diverso. É de fato a diversidade dos seres humanos, a diferenciação da qualidade deles e das suas tendências que constitui a grande reserva do gênero humano. A universalidade de Deus consiste na multiplicidade infinita dos caminhos que conduzem a ele, cada um dos quais é reservada a um ser humano².

 

Enfim, para os adeptos do cristianismo, que imprimiu uma marca profunda na alma do povo brasileiro, cujo fundador ensinou que a identidade de seus discípulos estaria na prática do amor mútuo e do amor universal-concreto, que inclui não só o diferente, mas também aquele que o olhar humano usual encara como inimigo, isto deveria ser sempre de novo recordado, isto é, trazido ao coração da sua própria fé, em respeito a todas as fés de todos os seres humanos

 

 

¹ Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 22ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 19.

² Buber, Martin. Il cammino dell’uomo. Magnano: Ed. Qiqajon, 1990, p. 28. 

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