OPINIÃO

 

Renata Queiroz Dutra é professora de Direito e Processo do Trabalho da Universidade de Brasília. É doutora e mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB. É líder do grupo de pesquisa "Transformações do Trabalho, Democracia e Proteção Social". Integra a coordenação da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (Remir-Trabalho).

 

 

Andréia Galvão é professora do Departamento de Ciência Política da Unicamp. Graduada em Ciências Sociais pela Unicamp, com mestrado em Ciência Política (1996) e doutorado em Ciências Sociais (2003), defendidos na mesma instituição. Integra a coordenação da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (Remir-Trabalho).

Andréia Galvão e Renata Dutra

 

 

Respectivamente, professora de ciência política da Unicamp e professora de direito do trabalho da Universidade de Brasília; ambas integram a coordenação da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (Remir-Trabalho)

 

Desde o início da pandemia de Covid-19, o governo federal estabeleceu uma perversa dicotomia entre economia e vida. Frases como “se todo mundo ficar em casa, vai morrer todo mundo de fome” ou “o desemprego leva à miséria, à depressão, a uma série de outros problemas, que matam muito mais do que o vírus” têm sido recorrentes na retórica presidencial.

 

“Memes” mostrando geladeiras vazias e crianças famintas reproduzem essa hierarquia entre emprego e saúde e estimulam uma esdrúxula concepção de democracia e de direitos de cidadania. Retomando o lema “o trabalho liberta”, estampado nas entradas dos campos de extermínio nazistas, e apelando a um vago direito ao trabalho, essa perspectiva critica os governos estaduais e municipais que controlam o funcionamento do comércio e restringem a circulação de pessoas. O lockdown e o toque de recolher estariam cerceando a liberdade, o direito de ir e vir e o “direito de escolha” dos indivíduos, mesmo que tal escolha envolva risco de contágio e de morte. Tais medidas seriam autoritárias e desumanas, por impedirem quem não exerce atividade essencial de levar comida para casa.


Exigir, sobretudo dos setores socialmente mais vulneráveis, o sacrifício individual em nome do funcionamento da economia constitui uma completa inversão da gramática de direitos. Os direitos sociais e trabalhistas não têm apenas uma dimensão individual, mas guardam, acima de tudo, uma dimensão coletiva. Sua universalidade estimula a solidariedade entre indivíduos e grupos com diferentes condições de existência.


Quando o Estado é desresponsabilizado de seu papel na formulação e execução de políticas sociais de emprego, saúde, transporte, educação, moradia etc., o trabalhador, abandonado à própria sorte, só pode contar consigo mesmo, ficando substancialmente privado de escolhas.

 

O direito do trabalho, que qualifica o direito ao trabalho, constitui uma ruptura em relação à ideologia segundo a qual a sociedade seria composta por indivíduos autônomos e livres para buscar, no mercado, os bens necessários à sua sobrevivência. A intervenção do Estado nas relações de trabalho busca reduzir as assimetrias e combater as desigualdades sociais, provendo meios para que os cidadãos possam enfrentar as contingências da sociedade capitalista tanto nos momentos em que podem trabalhar como também naqueles em que, por razões diversas, não podem fazê-lo.


Cabe ao Estado garantir que a geladeira não fique vazia e, ao mesmo tempo, permitir que trabalhadores e trabalhadoras preservem sua saúde e sua vida.

 

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Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 20/04/21

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