OPINIÃO

Dioclécio Campos Júnior é professor emérito da Universidade de Brasília, doutor em Pediatria e membro titular da Academia Brasileira de Pediatria.

 

 

Dioclécio Campos Júnior1

 

Nos tempos atuais, a expansão da cibernética tem revolucionado a humanidade no mau sentido. É a avalanche que mais ameaça a integridade da profissão médica. De fato, a desumanização que vai tomando conta do mundo corrói as entranhas das ações construtivas de uma sociedade, fundadas nos valores morais e éticos. A medicina humana perde sua importante tradição à medida que os discutíveis progressos tecnológicos são robustecidos por interesses pecuniários.

 

Os avanços técnico-científicos têm contribuído, sem dúvida, para a assistência à saúde do cidadão. Porém, são recursos complementares de uma prática profissional cuja essência humanista não pode ser materializada. Atualmente, dispositivos e utensílios eletrônicos são usados com intuito de criar o império da comunicação a distância. O objetivo é dominar os dois campos primordiais do desenvolvimento social da humanidade, quais sejam, a educação e a saúde. Ambos são pilares do humanismo que não podem ser corroídos nem corrompidos, sob pena de desfazer todo o seu acervo científico e cultural que há de ser preservado com a grandeza que possui.
A medicina é a síntese da sublime interação médico/paciente. Sua história reúne séculos de compromisso com o bem-estar físico, mental e social do indivíduo. Por isso, sua evolução requer coerente fortalecimento dos princípios solidamente cultivados, com os quais foi construída. É a profissão que reconhece os valores sociais entendidos como requisitos do padrão de vida ao qual o ser humano tem direito. Trata-se de um dos maiores legados da humanidade, trazido à tona pelo médico grego Hipócrates, no século V a.C. Os nobres preceitos por ele proclamados estruturaram a origem da medicina. Correspondem ao conteúdo do juramento feito pelo médico no momento de sua respectiva graduação. É quando o novo profissional assume publicamente o compromisso com o culto da mais pura, consciente, respeitosa e educativa relação humana para o exercício da missão a ser cumprida.

 

Em ato recente, o Conselho Federal de Medicina do Brasil oficializou a prática da telemedicina, que se contrapõe inteiramente ao modelo humano da profissão. É decisão que inverte o conceito de componente complementar, até então atribuído aos instrumentos diagnósticos e terapêuticos utilizados pelo médico para cuidar dos pacientes. O ser humano dedicado à medicina passa a ser visto como mero agente complementar da telemedicina. Está condenado à insignificância no universo da nova tecnologia. É uma descabida lógica que se dissemina, internacionalmente, em nome de falso progresso anunciado para iludir as populações no que concerne aos seus direitos fundamentais.

 

Delineia-se, assim, a confirmação da lúcida profecia do filósofo brasileiro Alceu de Amoroso Lima que, na década de 1960, afirmou numa de suas obras: “Ou o homem humaniza as máquinas, ou as máquinas mecanizarão o homem”. É um incontestável prenúncio de que a telemedicina alcançará a versão de um sistema robótico, capaz de mecanizar integralmente a assistência médica. A abrangência invasiva, com a qual está projetada, desumanizará a profissão.

 

Os recursos da tecnologia têm sido respeitados e incorporados aos procedimentos dos médicos. Com efeito, são conquistas que não devem ser rejeitadas nem subestimadas, desde que concebidas para colaborar com a qualidade do serviço da assistência à saúde, prestado pelo ser humano. É inadmissível que a inteligência artificial comande a atividade médica, profissão que jamais deverá ser exercida de forma eletrônica, como vem sendo programado.

 

Algumas instituições universitárias, de diferentes países, já começam a desencadear iniciativas com elevado potencial de reverter tão desumana desconstrução profissional. Baseiam-se em projetos elaborados com o intuito de reformular o currículo dos cursos destinados à formação dos profissionais da área de saúde, particularmente da medicina. Sua estratégia corresponde à incorporação das ciências humanas aos respectivos núcleos curriculares, na fase de graduação. A meta é reconstruir o horizonte humanitário, indispensável à visão de quem se diferencia para cuidar da assistência à saúde das pessoas. É o exemplo que as instituições brasileiras desse campo de conhecimento precisam seguir. Só assim atuarão em favor da medicina humana; do uso adequado dos avanços tecnológicos pertinentes; e contra a telemedicina, que começa a ser defendida como deplorável ideologia. É hora de defender o legado de Hipócrates contra técnicas hipócritas.

____________________________________

1 Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria, presidente do Global Pediatric Education Consortium (GPEC)

 

Publicado originalmente no Correio Braziliense em 14/2/2019.

 

 

 

Palavras-chave