OPINIÃO

Paulo José Cunha é professor da UnB, escritor e jornalista.

Paulo José Cunha

 

Anotem, porque vou escrever um despropósito: o principal problema das fake news não é o dano causado pelas informações falsas, mas o caráter kafkaniano de que se revestem pela impossibilidade de identificação de autoria e origem. Quando falamos de internet falamos planetariamente. Portanto, uma informação falsa postada no Reino de Avalon atacando a honra de um morador de Pasárgada não tem como ser deletada nem o autor punido, a menos que haja um acordo de cooperação entre os dois governos, já que cada país tem uma legislação específica sobre a rede mundial de computadores. Além disso, depois de posta a circular na web, toda informação se torna eterna. Mesmo que seja banida por decisão judicial de um blog ou rede social como o facebook ou o twitter, basta que alguém a tenha copiado e distribuído para ela voltar a circular como se fosse nova. Sem falar no tempo interminável gasto na apuração, julgamento e condenação de eventuais culpados, comparado ao tempo instantâneo percorrido pela informação via web.

 

Fake News e aedes aegypti

Diante disso, como é possível combater a disseminação de fake news? Até que todos os governos do planeta entrem em acordo, a única alternativa neste momento é tratar a informação falsa com as mesmas armas com que se combate o mosquito da dengue: com a conscientização de cada cidadão. Trabalho que começa na escola e passa pela responsabilidade de todas as instituições da sociedade civil. Aquela recomendação de não passar pra frente antes de confirmar a veracidade. Ainda assim, por depender do cuidado voluntário, o combate ao aedes aegypti é falho. Com as fake news ocorre a mesma coisa. E, é claro, além da conscientização, o próprio ato voluntário de provedores como Facebook e WhatsApp, que já começaram a adotar atitudes para conter a disseminação das mentiras virtuais. O Face baniu várias contas falsas do MBL – Movimento Brasil Livre, além de algumas dezenas de postagens comprovadamente falsas. E O WhatsApp já começou a marcar como “Encaminhada” as mensagens retransmitidas, elevando assim a responsabilidade de quem compartilha informações pela rede, permitindo pela primeira vez o rastreamento e eventual indiciamento dos responsáveis.     

 

A preocupação com o tema cresceu muito depois da identificação das digitais dos russos na última eleição americana. Ainda recentemente, o México passou por problema semelhante, pela ação de grupos políticos internos. Exatamente por isso governos e instituições de pesquisa vêm se mobilizando para encontrar mecanismos mais eficazes de combate às informações falsas. As próprias redes sociais, preocupadas com o futuro de seus aplicativos, entraram nessa guerra. No início de julho o WhatsApp, que abriga 1.5 bilhão de usuários ativos, 120 milhões no Brasil, anunciou que vai financiar 20 pesquisas acadêmicas sobre a disseminação de fake news pelo aplicativo. As áreas prioritárias são o processamento de informações de conteúdo problemático, uso em eleições, efeitos de rede e viralidade, detecção de comportamento problemático e alfabetização digital. O aplicativo vai entregar até R$195 mil a cada pesquisador. Convenhamos: uma ninharia para quem lida com bilhões de dólares.  

 

A academia ainda não acordou

O sinal de alerta ainda não parece ter sido aceso com a luminosidade que merece no âmbito da academia. São ainda tímidas as iniciativas de pesquisa universitária para a criação de mecanismos de combate à cyberpraga mais devastadora desde o surgimento dos vírus de computador nos anos 1970.

 

O potencial de interferência criminosa das fake news nas eleições de outubro chamou a atenção do judiciário, com a criação de um grupo de trabalho presidido pelo ministro Luiz Fux, do STF. Até aqui, o trabalho do grupo rendeu pouco, a não ser a constatação dos riscos das informações falsas e a dificuldade ou impossibilidade de punir os responsáveis. O problema da territorialidade é uma das principais barreiras porque é possível atravessar a fronteira, ir à Argentina, registrar um domínio em outro continente, hospedar um site de fake news na Inglaterra e pagar a conta com um cartão internacional. De lá, essa fábrica de mentiras passa a disparar informação instantânea de altíssimo poder de fogo, contando com o mais importante fator de disseminação: o compartilhamento das informações. A mecânica de disseminação das fake news é a mesma da bomba atômica. Falando de forma bem grosseira, a bomba atômica clássica funciona pelo princípio da reação em cadeia: um átomo é explodido. Aí seus cacos saem explodindo outros, cujos cacos explodem outros e assim indefinidamente. É precisamente o mesmo que ocorre quando alguém recebe uma fake, passa para um grupo e cada recebedor repassa para seus grupos... Tal quadro torna impossível a investigação da “paternidade” das fake news e põe por terra o conceito de territorialidade do delito. Tudo conduz para a conclusão de que, tal como se descobriu uma forma de conter spams da internet, a tecnologia encontrará algum bloqueador às notícias falsas em circulação na web.

 

Cuidado: o desmentido pode ser fake!

Tudo isso, é claro, está entrelaçado com outros complicadores. A Universidade de Oxford, que vem acompanhando o fenômeno, sustenta que mais da metade do tráfego da internet é feito por bots, programas que simulam ações humanas de forma repetitiva, criando tendências, atacando determinadas figuras públicas e espalhando boatos com ínfimas possibilidades de desmentidos. Ultimamente a situação se complicou ainda mais com o surgimento de sites de desmentidos que produzem desmentidos... fakes!

Fora as agências de checagem de informação, como a Lupa, poucas têm sido as iniciativas aqui em nosso quintal para dar combate eficaz às informações falsas. Instituições públicas dos três poderes ainda não se conscientizaram da importância de disponibilizar espaços específicos em seus sites para esclarecimentos permanentes sobre fake news que digam respeito às suas áreas de atuação. Universidades, com algumas poucas exceções, não criaram até hoje grupos de pesquisa voltados ao tema. E as poucas pesquisas acadêmicas têm atingido apenas a superfície do problema. Até este ponto do artigo vimos tratando da informação propositalmente falsa para denegrir a imagem de alguém ou de alguma instituição. Mas há outra área ainda mais virgem à pesquisa: a dos mitômanos que simplesmente se comprazem com a distribuição de informação mentirosa. As razões que geram a deformação de personalidade capaz de distribuir mentiras por prazer é uma área ainda aberta a estudos.

 

É a baba do quiabo, matando pra todo lado

Enquanto isso, as fakes continuam fazendo seu trabalho sujo. Pondo em risco a verdade das urnas. E a própria saúde das pessoas. Uma fake recente apontando os benefícios da baba do quiabo no combate ao diabetes custou o dedo de um brasileiro que abandonou o tratamento e os cuidados em troca do tratamento alternativo. Muitas pessoas com câncer, acreditando em fakes sobre os poderes milagrosos da raiz disso e da folha daquilo, estão morrendo por abandonarem os tratamentos convencionais e acreditarem nas lorotas turbinadas pelas redes sociais.

 

Não estarei aqui para conferir. Mas aposto como, lá no futuro, o século 21 vai ser conhecido como o Século das Fake News. O coquetel anti-HIV tem ajudado muitos portadores do vírus a conviver com a doença. Sua fórmula foi uma das maiores conquistas deste século. Mas ainda está distante a descoberta de um coquetel anti-fake news, a praga mais eficaz e insidiosa dos últimos séculos.        

Palavras-chave

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