OPINIÃO

Ana de Oliveira Frazão é professora de Direito Civil e Comercial da Universidade de Brasília (UnB). Graduada e mestre em Direito pela UnB, especialista em Direito Econômico e Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutora em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).

Ana Frazão



Se os avanços da Lava-Jato no âmbito da responsabilidade penal dos envolvidos são claros, o mesmo não se pode dizer das esferas da responsabilidade administrativa e civil. A experiência recente a respeito dos acordos de leniência da Lava-Jato tem mostrado uma dura realidade: a falta de harmonia e diálogo entre os entes oficiais envolvidos tem gerado insegurança jurídica em tal grau que pode comprometer até mesmo a eficácia dessa tão importante forma de cooperação.

 

A origem do problema decorre da existência de legislações paralelas, que conferem competências a instituições independentes, como o Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministério da Transparência (CGU) e, conforme o caso, também o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Como cada um desses entes pode aplicar medidas e sanções em razão de atos de corrupção, nada impede que, mesmo após terem firmado acordos de leniência com um deles (o MPF, por exemplo), as empresas se vejam sujeitas a uma série de outras sanções e medidas não previstas no acordo, em razão das iniciativas independentes dos demais entes.

 

O primeiro risco desse cenário indesejável é o de total desestímulo à política de leniência, que apenas pode se sustentar com base na confiança dos agentes econômicos que pretendem cooperar. Com efeito, por meio da leniência, os agentes reconhecem a sua participação nos ilícitos, oferecem provas contra si e se obrigam a cooperar na instrução dos ilícitos. Exatamente por isso, a contrapartida do acordo precisa ser clara e segura. Com a sobreposição de normas sobre o tema no Brasil, isso não ocorre. Temos um cenário em que não se sabe a extensão da competência de cada uma das autoridades envolvidas, de forma a possibilitar que, uma vez firmados acordos com uma autoridade, sejam eles suscetíveis de questionamentos, acréscimos ou mesmo da desconsideração por parte das outras autoridades.

 

Outro importante risco é o excesso de punição das empresas, o que pode facilmente ocorrer se cada autoridade envolvida exercer sua competência de forma isolada e não atenta às garantias dos particulares. Aliás, o princípio constitucional da proporcionalidade da pena impõe-se ao Estado como um todo, motivo pelo qual precisa ser considerado não somente em face das iniciativas punitivas isoladas, mas, sobretudo, em face do conjunto de todas as iniciativas punitivas. O que importa é que o poder punitivo estatal, visto sob perspectiva de unicidade, seja proporcional, exigência que se aplica igualmente na cooperação entre poder público e particulares, tal como ocorre nos acordos de leniência.

 

Sem dúvida que o lado mais complicado desse "excesso punitivo" a ser exigido nos acordos pode ser ou a quebra das empresas, diante da cumulação de punições, ou a inviabilidade prática da cooperação. Por essa razão, além de mais diálogo entre as instituições, uma das formas de operacionalizar o princípio da proporcionalidade das penas seria ponderar sobre o valor das multas e de outras sanções estruturais ou comportamentais que fossem mais compatíveis com a manutenção da empresa.

 


Nesse sentido, importante alternativa seria a alienação compulsória de controle, ou seja, exigir que os controladores envolvidos nos ilícitos deixem a gestão da empresa. Essa medida assegura a punição do controlador, ao mesmo tempo em que possibilita a manutenção da empresa sob nova gestão. A mudança no comando tem a importante consequência de poder romper com práticas viciadas e mudar o contexto institucional dos mercados, sendo mais importante do que sanções pecuniárias.

 

Outro risco é a desconexão da responsabilidade civil das esferas da responsabilidade punitiva (penal ou administrativa). Afinal, apesar das distinções, é inequívoco que tais esferas compartilham diversas funções, como a preventiva, além de apresentarem áreas de sobreposição. Basta lembrar que várias metodologias de quantificação de multas administrativas têm por base a estimativa do dano, por exemplo.

 

Dessa maneira, tanto é incorreto afirmar que a responsabilidade administrativa não leva em consideração o dano, como é incorreto afirmar que a responsabilidade civil apenas leva em consideração o dano. Logo, é necessário mais diálogo entre as duas esferas, a fim de que ambas possam cumprir suas funções em harmonia e, sobretudo, com proporcionalidade e coerência.

 

Os riscos aqui apontados ajudam a mostrar que a luta contra a corrupção exige mais do que a existência de diferentes leis que, pontualmente, contenham soluções para os problemas concretos. Ela exige modelagem institucional abrangente, que possibilite a harmonia entre as diversas leis e os entes governamentais envolvidos e, mais do que isso, a congruência e a coesão entre as três esferas de responsabilização - a civil, a administrativa e a penal - sempre atentas à proporcionalidade e ao princípio da manutenção da empresa.


                                                                                                              
Publicado originalmente no Correio Braziliense em 6/7/2017.

 

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