OPINIÃO

Diva do Couto Gontijo Muniz é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília. Graduada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, especializada em Filosofia e História da Arte no Brasil pela PUC/RJ, mestre em História pela UnB e doutora em História Social pela USP. Atua nas áreas: História e Historiografia do Brasil Imperial, História, Historiografia e Historiografia das Mulheres, Estudos de Gênero e Ensino de História.Tem publicado livros, capítulos de livros e artigos em revistas especializadas.

Diva do Couto Gontijo Muniz


Nem percebi, nesses tempos acelerados, saturados e dispersos, a aproximação do 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Embora defenda, como historiadora e feminista que sou, que todo dia é dia das mulheres, no sentido de que precisamos matar um leão por dia para assegurar nossa localização no mundo, reconheço a importância da data. É sem dúvida um evento datado, programado, teatralizado, mas significativo porque confere visibilidade pública às mulheres, essa outra metade da humanidade cuja existência ainda precisa ser recorrentemente lembrada e defendida. Assim, faz sentido a institucionalização de uma data para homenagear as mulheres, para expressar o (re)conhecimento delas como seres políticos, como cidadãs, como pessoas com direito a espaços de fala e lugar de sujeito.

 

Essa grande transformação – a emancipação feminina – tem historicidade, ou seja, ela não ocorreu de uma só vez, ao mesmo tempo, em todas as sociedades ocidentais, para todas as mulheres. Tampouco se deu por decreto, concessão ou “evolução natural”. Pelo contrário. Ela resulta de uma longa, difícil e acirrada luta política, levada a cabo por mulheres de diferentes credos, crenças, corpos e cores, unidas em torno de um objetivo comum, mas também divididas por conta da diversidade e pluralidade de suas posições, desejos, experiências e expectativas.

 

De seus diferentes lugares de fala – ativistas, militantes de movimentos sociais, feministas, integrantes de ONGs, intelectuais, donas de casa, cientistas, parlamentares, escritoras, jornalistas, professoras etc. – elas lutaram inicialmente pela igualdade de direitos – políticos, civis, sociais, econômicos e reprodutivos; posteriormente, pelo respeito à diferença, pelo direito de escolha quanto à sua sexualidade, seus corpos, seus desejos, sua vida. Trata-se, portanto, de uma histórica luta que precisa ser lembrada para não ser esquecida, como lucidamente avalia minha orientanda Ana Vitória Sampaio (HIS/UnB).

 

Não por acaso, a ONU, em 1975, inventou o 8 de março como o dia das mulheres, como evento comemorativo de seu protagonismo histórico. Ele representa, nesse sentido, o ato fundante do novo estatuto das mulheres, já conquistado ou a ser perseguido. Além disso, e concomitantemente, o evento mobiliza e dissemina programas, projetos e agendas de luta pela ampliação de direitos e oportunidades. Penso que, nesse mesmo ato em que anualmente se homenageia as mulheres, também deveria haver o do exercício crítico acerca das conquistas efetivadas e a serem buscadas e/ou consolidadas, bem como dos recuos e/ou retrocessos operados. Exercício, esse, que inclui e exige denunciar o sexismo ainda operante na produção do saber e na estruturação das relações sociais. Afinal, é justamente por conta de tal viés que ainda permanecem a dificuldade e resistência em perceber que as relações entre homens e mulheres não são inscritas na natureza, mas fruto da cultura e, portanto, passíveis de transformação.

 

Em 2016, o que há então para comemorado? No caso específico do Brasil, não há como desconhecer que muitas conquistas e avanços ocorreram em meio às mudanças ocorridas no século XX e nas primeiras décadas do XXI. Naquele, reconhecido como “século das mulheres”, importantes deslocamentos em direção à emancipação política e civil das mulheres, com a igualdade de direitos e de oportunidades assegurada e ampliada nos âmbitos público e privado. Além destas conquistas, as mulheres incluíram também em suas agendas a luta pelos direitos das empregadas domésticas, pela saúde, reprodução e creches, por segurança no trabalho e contra o assédio sexual, contra a violência de gênero, dentre as principais.

 

Trata-se de programa de luta que ampliou sua pauta no século XXI com suas ações de combate à violência doméstica, sexual e obstétrica; ao feminicídio; à criminalização do aborto; ao assédio sexual no espaço público; à exploração sexual de crianças e adolescentes; ao tráfico de mulheres e escravidão sexual; ao fundamentalismo religioso na política; à toda forma de abuso contra mulheres e meninas. A promulgação das leis n.º 11.340/2006 (Maria da Penha) e 13.104/2015 (feminicídio como crime hediondo) é uma vitória significativa nessa luta que ampliou suas formas de atuação. Uma delas, a de campanhas em redes sociais, disseminando o debate por meio da publicação de textos, relatos, depoimentos e imagens na internet. É o caso, por exemplo, das redes “Chega de Fiu Fiu” e “Meu Amigo Secreto”, cujos debates vêm mobilizando milhares de internautas. Não há como não apostar nelas, em seu potencial mobilizador, questionador e promotor de mudanças comportamentais. Quem viver, verá...

 

A conquista de cidadania plena, porém, ainda demanda percorrer um tensionado e minado percurso em razão das resistências, dos comportamentos arraigados, de uma cultura ainda formada e informada por práticas e representações da inferioridade do feminino em relação ao masculino. Com efeito, não há como ignorar que não obstante a invisível e sensível redução da subordinação social das mulheres, elas ainda sofrem com a violência, com salários menores, com reduzida representação política; enfim, com preconceitos e discriminações de diferentes tipos.

 

Assim, se pensarmos a cidadania na acepção que lhe dá Hannah Arendt, o “direito a ter direitos”, ou seja, como igualdade e como eliminação de qualquer forma de hierarquização fundamentada no “natural”, as mulheres ainda não são cidadãs plenas. Essa busca permanece em pauta. Há muito ainda a ser feito, a ser modificado, a ser conquistado: muita misoginia a ser denunciada e extirpada; muita discriminação a ser exposta e desconstruída; muita violência a ser combatida, punida e eliminada. Afinal, como nos ensina Foucault, se as coisas existentes foram feitas, podemos, com a condição de que se saiba como foram feitas, serem desfeitas. Espero que as vitórias comemoradas no Dia Internacional da(s) Mulher(es) sejam inspiração para as transformações há muito tempo esperadas e exigidas. 

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