OPINIÃO

Paulo José Cunha é professor da UnB, escritor e jornalista.

Paulo José Cunha1

 

Para o atual governo, a ditadura militar não foi ditadura; as atrocidades por ela cometidas foram simples reação aos inimigos da pátria; as torturas não passaram de contra-ataque normal em tempos de guerra; e a história precisa ser reescrita nos livros didáticos, para evitar que as gerações futuras tenham uma ideia equivocada do período militar.

A tentativa de reescrever a história conforme conveniências de quem ocupa o poder é velha como o tempo.

 

O presidente Bolsonaro nutre verdadeira admiração pelos canalhas da ditadura militar, a partir de um dos seus personagens mais repugnantes, o coronel Brilhante Ustra, único torturador dos anos de chumbo condenado pela prática de... tortura. Ainda outro dia ouvi do querido escritor Emanuel Medeiros a revelação de que sofreu torturas violentas comandadas pessoalmente por Ustra, homenageado em rede nacional durante a votação do impeachment da presidente Dilma Roussef pelo próprio Bolsonaro, que se orgulha de ter como livro de cabeceira a autobiografia dele. Lá em 1998, numa entrevista à revista Veja, Bolsonaro afirmou que a ditadura chilena de Pinochet, que matou mais de 3.000 pessoas, “devia ter matado mais gente”. Para ele, a ditadura militar foi uma época “gloriosa” da história do Brasil. Numa discussão com manifestantes, em dezembro de 2008, afirmou que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”. A propósito dos desaparecidos políticos pelos agentes da repressão, afixou na porta de seu escritório um cartaz dirigido aos familiares dos desaparecidos políticos dizendo que “quem procura osso é cachorro”.

 

De Herodes ao Primeiro Imperador

 

Tentativas de revisão da história para fazê-la caber nas conveniências da autoridade do momento são recorrentes. A própria história está cheia de relatos neste sentido.

 

Uma das mais antigas ocorreu trezentos anos antes daquele menino de Nazaré molhar as palhas da manjedoura, em Belém, fugindo da fúria de Herodes. Aliás, o próprio Herodes tentou mudar o curso da história. Ao tomar conhecimento de que o Messias teria vindo ao mundo em Belém, mandou sacrificar todas as crianças com menos de dois anos de idade. Ainda bem que aquele anjo apareceu num sonho para José e o aconselhou a pegar a família e fugissem porque os agentes de Herodes andavam na cola deles. José pegou Maria e o menino, picaram a mula e o resto da história a gente conhece.

 

Mas o que quero contar agora é a tentativa de varrer milênios de história da China simplesmente tentando sumir com seus vestígios. Herbert Allen Giles conta que “o ministro Li Su propôs que a história começasse com o novo monarca, que tomou o título de Primeiro Imperador. Para truncar as vãs pretensões da antiguidade, ordenou-se o confisco e a queima de todos os livros, salvo os que ensinassem agricultura, medicina e astrologia. Os que ocultaram seus livros foram marcados com um ferro em brasa e obrigados a trabalhar na construção da Grande Muralha. Muitas obras valiosas pereceram; à abnegação e à coragem de obscuros ou ignorantes homens de letras deve a posteridade a conservação do cânone de Confúcio. Diz-se que tantos literatos foram executados por desacatarem as ordens imperiais, que no inverno cresceram melões no local onde os tinham enterrado”. E a história da China está aí, apesar das tentativas do Primeiro Imperador.

 

Apagar a história não faz com que ela não exista

 

As tentativas de apagar o passado são muitas. Samuel Johson relata que num dos parlamentos populares convocados por Cronwell foi proposto que “se queimassem os arquivos da Torre de Londres, que se apagasse toda memória das coisas pretéritas e que todo o regime da vida recomeçasse”.

 

Aqui mesmo em Pindorama, em 1890, o então ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, assinou um despacho ordenando a destruição de documentos referentes à escravidão. Na época, o jornal O Estado de S. Paulo publicou trechos da ordem, pedindo que registros sobre servidão fossem enviados à capital para que se procedesse “a queima e destruição imediata deles”, ato que mereceu voto de aprovação do Congresso Nacional.

 

 

Ei, Bolsonaro, vai tomar ciência do que é internet!

 

Um dos filhos de Bolsonaro propôs, outro dia, que os livros didáticos recontassem a história da ditadura negando que ela tivesse existido e argumentando que “se continuarmos no nosso marasmo, os livros didáticos continuarão colocando os assassinos como heróis e os militares como fascínoras”.

 

Cabe lembrar a Bolsonaro e à família dele que atualmente existe um troço chamado internet, onde é IMPOSSÍVEL apagar seja lá o que for. Se no passado dava pro coronel mandar recolher nas bancas o jornal que revelava algo que o incomodava, hoje não dá para simplesmente mandar desligar a rede mundial de computadores. Portanto, a história permanecerá tal e qual ocorreu, e poderá ser recontada eternidade a dentro, por quem quiser saber do causo como o causo foi. Como diz Jorge Luis Borges, ao comentar a tentativa do auto-proclamado Primeiro Imperador da China, “o propósito de abolir o passado já ocorreu no passado e – paradoxalmente – é uma das provas de que o passado não pode ser abolido.(...) “O passado é indestrutível; tarde ou cedo todas as coisas voltam, e uma das coisas que voltam é o projeto de abolir o passado”.  

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¹Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília há 19 anos, onde ministra as disciplinas de Jornalismo e Fake News, Telejornalismo e de Oficina de Texto. Já foi repórter da Rede Globo, do Jornal do Brasil, de O Globo e também trabalhou na Rádio Nacional. Hoje é apresentador da TV Câmara

 

  

 

 

 

 

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