OPINIÃO

Thaïs de Mendonça Jorge é professora do Departamento de Jornalismo (FAC) e foi Secretária de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

Thaïs de Mendonça Jorge¹

 

 

O senhor Adamastor não foi ao velório do jornalista Ricardo Boechat. Ou melhor: vários senhores Adamastor, José, Pedro, Geraldo ou senhoras como Dona Joventina, Maria, Teresa, Margarida estiveram presentes na homenagem ao radialista morto na última segunda-feira, 11/2, disfarçados de pessoas comuns. Eram aquelas que o ouviam todas as manhãs, liam sua coluna ou o viam à noite na tela da TV Bandeirantes.

 

Adamastor e Joventina eram os nomes com que Boechat carinhosamente chamava os ouvintes desconhecidos que lhe mandavam mensagens, cidadãos imaginários a quem ele se referia com absoluta confiança e respeito. “Em 12 anos de rádio, 47 de profissão, prefiro dar a eles o crédito do que estão me reportando”, afirmou ele, no auditório do edifício Brasil XXI, em Brasília.

 

A morte de Boechat parece encerrar um ciclo no jornalismo brasileiro, cuja trajetória, vivida por toda uma geração, não se repete mais nos atuais tempos de convergência tecnológica. Conheci Ricardo quando ele ainda tinha cachinhos e trabalhava na coluna de Ibrahim Sued. Foi ali, cobrindo férias, que descobriu o que era fazer jornalismo, aprendeu a conversar com todos os tipos de pessoas e frequentar vários ambientes, pois Ibrahim, muito exigente, não abria mão de que seus colaboradores circulassem pela sociedade carioca.

 

Também foi onde cultivou calos nas orelhas, que mostrava com orgulho e a usual dose de sarcasmo. Mesmo no Jornal do Brasil, onde convivemos por cerca de oito anos, ele mantinha o hábito de falar em dois telefones ao mesmo tempo, isso enquanto teclava. A última vez em que estive com Ricardo Eugênio Boechat, argentino criado em Niterói, foi num evento da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), em 22 de agosto do ano passado.

 

“O Repórter Esso, precursor do jornalismo no rádio e na televisão, tinha como slogan: O seu Repórter Esso, testemunha ocular da história. Hoje a testemunha ocular da história prescinde de nós e consegue o milagre da difusão em escala planetária”, disse a uma plateia atenta, confessando que contava nos dedos de uma mão as ocasiões em que realmente foi testemunha de algum fato. Irreverente, atreveu-se a polemizar com outros colegas jornalistas, ao admitir que publicava de olhos fechados o que os ouvintes lhe enviavam.

 

“Faço o seguinte cálculo: pelo trabalho que dá enviar uma informação, pelo número de induções que eles têm que fazer, é muito difícil que me passem uma informação inverídica. Isso nunca me aconteceu.” Ele fornecia seu número de telefone e atendia até de madrugada, “porque jornalismo é fonte” e dali podia vir um furo de reportagem. “São sete horas e trinta minutos”, iniciava o noticiário todas as manhãs, e com o mesmo bom humor lá estava ele à noite na telinha, criticando, ironizando, ensinando. Sempre perfeccionista e com a obsessão da matéria exclusiva, da precisão e da linguagem coloquial.

 

Assim, Boechat foi também professor. Colegas que acompanhavam o âncora da Band relatam seu tom didático, as broncas e brigas às vezes em pleno ar, quando destacava com toda a razão a necessidade de se falar com os brasileiros de todas as classes, culturas e idades. Tanto que, entre os ouvintes órfãos que enviaram depoimentos à rádio Band News ou à TV Bandeirantes, estavam, sim, Adamastor e Joventina, como também crianças, jovens e adultos de muitas profissões.

 

A falta de Boechat não se limita ao espaço que ocupava na emissora ou à coluna da Istoé. Fará falta o que conquistou para o jornalismo do Brasil, a voz contundente, ácida, contra os maus políticos, contra mandos e desmandos dos poderosos, e um jeito especial de falar com as pessoas, de brincar com a realidade – como quando fingiu telefonar para a mãe para abordar os desvios de dinheiro da Petrobrás, ou quando apareceu de peruca preta, desmistificando mais um produto contra a calvície.

 

O exemplo de Ricardo Boechat não é importante apenas pela carreira de quatro décadas, porém, mais ainda, pela compreensão de que o jornalismo é um serviço público. Os donos das empresas midiáticas são os que pagam o salário, mas o jornalista está a serviço da população e é a ela que deve prestar contas. “Jornalismo é campo. Ficar dentro da redação enferruja”, lembrou, à guisa de despedida, ao final de sua última apresentação meteórica em Brasília. Inesquecível.

 


¹Professora da Faculdade de Comunicação e Secretária de Comunicação da Universidade de Brasília.

 

 

 

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