OPINIÃO

Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e doutora em Sociologia pela UnB/Universidade de Barcelona.

Berenice Bento ¹

 

A primeira notícia daquele dia: Leilane morreu. Duas palavras. Imaginei meu amigo do outro lado da tela tentando encontrar as palavras certas para me enviar esta mensagem. Li e reli aquelas duas palavras tentando descobrir algo oculto, arrancar delas uma verdade outra. Mas não havia nada para ser dito. Leilane morreu.

 

Aos 34 anos Leilane Assunção era pós-doutora em Ciências Sociais pela UFRN. Tinha um amor incondicional àquela universidade. Toda a minha memória do tempo em que passei na UFRN está atravessada pela presença da Leilane. Vivemos muitos momentos de cumplicidade de luta juntas. Um deles foi quando Leilane foi receber, em meu nome, o Prêmio Nacional de Direitos Humanos entregue pela presidenta Dilma Rousseff. Foi um momento feliz. Sentia uma admiração sem fim por aquela mulher que acreditava que a UFRN poderia ser um lugar melhor para tod@s, livre do ódio às diferenças.

 

Ela fez a graduação em História, mestrado em História, doutorado em Ciências Sociais e pós-doutorado em Ciências Sociais. A última vez que a encontrei foi para me despedir. Eu estava de partida para Brasília. Ela me mostrou com orgulho sua família de gatos, seu jardim e pomar. Ao final, lhe dei um conselho que ela não pedira: vá embora de Natal. Faça concurso para outra universidade. A UFRN não te merece. A UFRN não te quer. Ela me agradeceu, nos abraçamos e ela me disse: Aqui é meu lugar. Eu ainda serei reitora da UFRN.

 

Poucas pessoas ajudaram a transformar tanto aquela instituição quanto a Leilane. Todo o processo de transformação corporal, identitário e político pelos quais Leilane passou foi vivido de forma pública e sempre acompanhado por uma luta permanente por reconhecimento. Vocês podem imaginar as lutas que ela, uma mulher trans, teve que travar para chegar a compor o 1% da população brasileira? Isso mesmo, apenas 1% da nossa população tem o título de doutor/a. Desde que defendeu seu doutorado Leilane tentou concursos públicos para ingressar na carreira docente.

 

Chego a ruborizar quando imagino que pessoas falam em deixar o Brasil devido à vitória do fascismo nas eleições presidenciais. Ruborizo de vergonha por estas pessoas que pouco sabem sobre o que é viver na resistência diária e que ao primeiro grito baixam as orelhas. Durante toda a vida Leilane teve que sobreviver aos fascismos ditos e não ditos. Quantas vezes ameaçaram Leilane de morte dentro da própria UFRN? Ela queria usar o banheiro feminino? O que disse o segurança? Que se ela insistisse, iria matá-la e separar o seu corpo da cabeça e jogar os pedaços do seu corpo em um rio. Não vou aqui relatar todas as violências que Leilane sofreu. A cada violência sofrida, Leilane virava uma leoa.

 

Leilane morreu. Tenho vivido o luto com um oco no peito. Estou oca. Talvez se eu estivesse na presença de nossos amigos e tivesse misturado meu choro ao deles este oco já estive ido embora, mas não. Ele insiste em me habitar.

 

A Leilane tem me visitado nos sonhos. Acordo aos sobressaltos me perguntando o que deixei de fazer para tê-la ainda conosco. Ainda não aceitei a morte de Leilane. Ela passou por todos os ritos de provação na universidade. Provou que estava amplamente capaz para assumir as tarefas de ensino e pesquisa do fazer docente. Por que Leilane quando morreu estava vivendo do apoio financeiro de amig@s? Ora, não diz o credo neoliberal que somos o que plantamos, ou seja, o mérito seria o critério último de verdade, aquilo que nos define? Então, o que Leilane precisava provar mais? A Leilane é o ruído, a interrupção do discurso do mérito. Não bastava ser doutora, pós-doutora. Ela era uma mulher trans e nada do que ela fizesse apagaria esta marca.

 

Nos últimos meses de vida Leilane passou por inúmeras dificuldades financeiras. Começava a ver cada dia mais longe o sonho de se tornar professora da UFRN. As experiências de dor com a instituição, acredito, são parte de sua causa mortis. A UFRN não a queria. E ao dizer isto não estou negando o carinho e admiração que ela tinha de tantas pessoas, principalmente, estudantes que não cansavam de repetir o orgulho de tê-la como professora.

 

Eu queria Leilane viva, escrevendo seus artigos semanais, fazendo sua luta diária para transformar o mundo em um lugar mais livre e bonito.

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¹É professora do departamento de sociologia da Universidade de Brasília. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás, mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília, doutora pela UnB/Universidade de Barcelona e pós-doutora pela CUNY/EUA.

Publicado originalmente no jornal Tribuna do Norte em 25/11/2018.

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