OPINIÃO

José Geraldo de Sousa Júnior é professor da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (Ceam); ex-Diretor da Faculdade de Direito e ex-reitor da UnB. Colidera o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua.

 

José Geraldo de Sousa Júnior¹

 

O que mais se projeta da Constituição Federal brasileira no tempo presente é a promessa ainda não realizada de concretizar direitos em percurso instituinte, aqueles que, conforme o parágrafo segundo de seu artigo quinto, derivam do regime e dos princípios que moldam a arquitetura da própria Constituição, notadamente os que se fundam no movimento solidário e mundializado de afirmação dos direitos humanos.

 

A Constituição é ainda o projeto de construção de uma sociedade que se comprometa com a superação das desigualdades, da pobreza que exclui, aliena e desumaniza, que rompa com o atraso colonialista que infantiliza, tutela, espolia e oprime o trabalhador (subalternização pela classe), o gênero (subordinação patriarcal da mulher e segmentos identitários) e as etnias (desumanização pelo racismo e pelas discriminações de todos os matizes). Ela é ainda a promessa de instituição de um projeto de sociedade que supere a cultura do favor, do apadrinhamento, do clientelismo, do nepotismo, do cunhadismo, do prebendalismo, (leia-se Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda, Victor Nunes Leal), enquanto aponta para a construção de uma sociedade plural, fundada na dignidade, na cidadania e nos direitos. Ela é a contraposição entre a afirmação censitária (A “Constituição da Mandioca”, de 1824, do período escravista), dos homens letrados, de bem (porque proprietários), heterossexuais assim declarados, confessionais, fascinados pelos imperativos de acumulação possessiva de um sistema de mercado que tudo coisifica, para se realizar, lutas sociais depois. Ela é ainda a estrutura pedagógica de afirmação de uma sociedade fundada nos valores de realização dos direitos humanos, embora permaneçam, por toda parte, inclusive no espaço da educação universitária, recalcitrâncias nesse tema, a ponto de não deter posturas obscurantistas que se extravasam em práticas de alienação e de atentado aos seus símbolos (conforme aconteceu recentemente em nossa UnB em atos de vandalismo na BCE, depredando livros sobre o tema). Ela é, em síntese, a Constituição Cidadã, que qualifica a democracia e a radicaliza pela participação popular deliberativa, supervisora das funções públicas e do controle social das políticas, nas formas previstas e inventadas a partir da dinâmica desses processos que configuram os direitos não como quantidades estocáveis em prateleiras de um almoxarifado legislativo, mas como relações que se ressignificam em experimentalismos emancipatórios.

 

Numa manifestação de caráter celebratório acerca de marco tão simbólico quanto o de 30 anos de continuidade constitucional, o mais longevo no período pós-colonial brasileiro, nele incluído o tempo republicano, é quase natural que pensemos – membros que somos de uma comunidade acadêmica – a Constituição pelo modo como ela designou entre seus valores e princípios aqueles que dão relevo a universidade: a liberdade de ensinar, a autonomia institucional e a educação superior como um bem público.

 

Começando por esse último enunciado, é sempre bom lembrar que a retomada política da tensão entre o público e o privado, que agora se assiste quando se examina os fundamentos das reformas em curso, notadamente com a PEC de Teto de Gastos voltada para assegurar financiamento de desempenho econômico-financeiro às custas de investimentos sociais – saúde, educação – recoloca o impasse que em 1988 dividiu os engajamentos sobre seres tais bens, sociais, públicos, responsabilidade do Estado, ou privados, deixados à dinâmica apropriadora, acumuladora, movida por interesse do Mercado. Essa tensão, que na saúde opôs os debates entre a OMC – Organização Mundial do Comércio – e a área de Direitos Humanos da ONU, representando os debates da Conferência da OMC em Doha, em 2001, em embates cruciais para preservar contra os interesses econômicos do Mercado (Propriedade Intelectual, Patentes, Concorrência) contrastes éticos formidáveis que puseram em causa a necessidade de acesso a medicamentos essenciais, sobretudo em países em desenvolvimento, fazendo sobressair fundamentos prevalentes destinados a salvaguardar a saúde pública, também se colocou em relação à educação, no mesmo ambiente, para acentuar o impasse entre a educação pública, bem social e o ensino privado, disputado pela Organização Mundial do Comércio para integrar a lista de serviços acessíveis ao mercado. Isso se revela na Constituição de 1988, fazendo incidir como valor a saúde e a educação como direitos de todos e dever do estado.

 

Não é coincidência que esse impasse retorne agora quando se busca extrair da “velha” Constituição uma outra Constituição modelada nas reformas em curso, não só no quesito saúde, mas também no requisito educação. Aqui, o pano de fundo da questão é o mesmo. Também a educação e com mais nitidez a educação superior, é tensionada sob esse terrível cabo de guerra.

 

Em boa medida os desafios e as tarefas que se colocam na conjuntura, em face dos impasses que põem a Constituição numa encruzilhada, implicam tomar consciência e posição o que se constata hoje sob a forma de verdadeiro assédio neoliberal às universidades.

 

Tendo em mente esse desafio é que, em agosto de 2017, quando a Universidade de Brasília (UnB) teve a honra de receber Aaron Ciechanover, ganhador do Prêmio Nobel de Química de 2004, foi alvissareiro ouvir o professor descrever, em uma palestra riquíssima, o passo a passo da investigação que o levou a receber o maior reconhecimento acadêmico do mundo. Em seu relato, objeto de uma intervenção posta para afrontar as tarefas atuais da universidade pública, na conjuntura, Ciechanover falou da importância da ciência pura, de base, para o desenvolvimento da sociedade. A trajetória dele é um exemplo disso. Depois de estudar o funcionamento da proteína chamada ubiquitina, por “curiosidade”, o professor viu o achado se tornar central para a moderna medicina de combate ao câncer.

 

Ciechanover, entretanto, não se limitou a esse aspecto. Falou, também, sobre quão importantes são as universidades. Lembrou que essas instituições sofrem pressões grandes e contínuas e que o orçamento para a ciência é o primeiro a ser cortado nas crises, o que, na opinião dele, é um erro estratégico. Ouvir uma defesa tão convicta da relevância da pesquisa para a humanidade foi emocionante, ainda mais diante da situação atual da ciência e das universidades no Brasil. Neste ano, o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) foi 50% menor do que o de 2010 (em valores corrigidos).

 

Pesquisadores de todo o país vivem uma incerteza constante quanto à manutenção de condições mínimas para o desenvolvimento dos projetos, o que contribui para que cada vez menos pessoas se interessem pela carreira acadêmica. O cenário é tão dramático que, em setembro, 23 ganhadores do Prêmio Nobel encaminharam uma carta ao presidente Michel Temer, alertando para os riscos da falta de investimento na área.

 

Em termos orçamentários e sem contar a inflação, de 2014 a 2017, as universidades federais tiveram redução média de 50% dos recursos de capital e de 20% dos recursos de custeio. Além disso, o repasse financeiro – o montante que chega às instituições para o pagamento das contas — tem ficado em apenas 60% do valor liquidado. Ou seja, é preciso priorizar o que pagar.

Não bastasse a asfixia orçamentária e financeira, as universidades públicas vêm sendo alvos de acusações como a de falta de transparência e planejamento, as quais têm o intuito de imputar às instituições, de maneira genérica e superficial, o ônus da má gestão e da opção dos governos de não priorizar o investimento em educação.

 

Ressurge, nesse cenário, a proposta de cobrança de mensalidades, valendo-se do senso comum de que as universidades são redutos da elite econômica. Isso está longe da realidade. Nos últimos anos, as cotas raciais e sociais, adotadas de diferentes formas pelas instituições federais, democratizaram o acesso ao ensino superior. Hoje, na UnB, metade dos ingressantes são oriundos de escolas públicas.

 

Sabemos que a eficiência é um dos princípios mais relevantes da administração pública e que é inegável que as universidades federais trabalham para aperfeiçoar seus processos, atualizar seus sistemas de gestão e reduzir a burocracia. Por isso, vemos com muita preocupação a espetacularização de ações rotineiras de fiscalização como forma de desacreditar as universidades públicas e relativizar a sua importância para o desenvolvimento do Brasil.

 

Como bem lembrou Ciechanover, as universidades são, por excelência, o espaço do conhecimento, das reflexões, da criatividade e da inovação. Portanto, em momentos de dificuldade, deveriam ser fortalecidas e consideradas parceiras na busca de alternativas e soluções. Encará-las como um ônus para o Estado é reduzir os nossos horizontes de crescimento e sacrificar as novas gerações.

 

Para superar as dificuldades, é imprescindível a utilização plena dos recursos arrecadados pelas instituições por meio de projetos de pesquisa e inovação. Atualmente, esses recursos só podem ser usados até o limite autorizado pelo governo federal – e esse limite não tem sido ampliado, mesmo com reiterados pedidos, desde o início do ano. Essa pauta é urgente e precisa ser discutida pelo poder público, pois estimularia as instituições a captar recursos, em complemento aos recursos estatais, contribuindo decisivamente para gerar riqueza e desenvolvimento econômico.

 

Por isso que, na celebração dos 30 anos da Constituição brasileira e nos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (no próximo 10 de dezembro), deve-se pensar com Darcy, mais uma lealdade da UnB com a Universidade Pública e com a Constituição que a projetou, para com ele afirmar que a questão da Educação não é, enquanto crise, uma resultante de um acaso histórico. É um projeto. Agora, mais fortemente, no bojo das injunções de uma ação neoliberal em curso, forte na desconstitucionalização (PEC de Limitação dos Gastos Sociais, Reformas Trabalhista e da Previdência) e na desdemocratização do País (afetação dos direitos de participação, judicialização seletiva, criminalização do protesto), que sufoca a universidade.

 

Honrar, pois, a Constituição de 1988 é defender o legado social e democrático e perseverar, seja qual for a conjuntura política que se arme no horizonte do País, na construção de uma universidade pública, bem social, autônoma e livre para ensinar e aprender no projeto de emancipação humana.

 

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¹José Geraldo de Sousa Junior é professor da Faculdade de Direito, ex-Reitor da Universidade de Brasília e membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília.

 

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