OPINIÃO

Tatiana Lionço é professora do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia e Coordenadora do Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília. Graduada, mestre e doutora pela UnB. Tem se dedicado ao estudo do fundamentalismo religioso na política nacional, das redes de proteção para a comunidade LGBT universitária e dos processos de subjetivação e sua relação com gênero e sexualidade.

Tatiana Lionço

 

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) deu um passo importante na luta política pela garantia de direitos para travestis e transexuais no Brasil. No último dia 29 de janeiro, foi assinada e tornada oficial a Resolução CFP 01/2018, que estabelece normas de atuação para profissionais de Psicologia em relação às pessoas travestis e transexuais. O documento veda a discriminação e a patologização, afirmando a travestilidade e a transexualidade como oriundas da autodeterminação das pessoas sobre suas próprias identidades. Ainda, apresenta-se como importante instrumento normativo de recusa à transfobia, deslocando epistemologicamente a problemática do sofrimento das pessoas travestis e transexuais do registro individual (sofrimento intrapsíquico) para o registro do laço social (a transfobia como motor do sofrimento por meio dos efeitos do preconceito na deterioração dos vínculos sociais e institucionais). É importante saudar este ato normativo também como expressão da autonomia da própria Psicologia brasileira na autodeterminação de suas próprias inteligibilidades sobre humanidade, sociedade, saúde e subjetividade, orientando e regulando o exercício profissional a partir de seus próprios princípios.

 

A discussão sobre despatologização das identidades travestis e transexuais encontra como eixo central a retórica médica sobre as pessoas trans, que ainda constam nos manuais diagnósticos da Medicina como condições psicopatológicas. Em 2012, o debate da despatologização da transexualidade estava na pauta por ocasião da revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais da Associação de Psiquiatria Americana em sua quinta versão (DSM-V). O DSM tem sido adotado globalmente como parâmetro diagnóstico das psicopatologias, tendo sido a transexualidade deslocada em 2012 da lógica do transtorno da identidade de gênero para a ideia da disforia de gênero. Tal mudança não dirimiu, no entanto, os efeitos da patologização sobre as pessoas trans, já que ainda remete o adoecimento à interioridade psíquica do sujeito em sua suposta disforia. A pessoa transexual e travesti permaneceria assim sendo o motor do próprio sofrimento ao não suportar a incongruência entre o sexo designado ao nascimento e a identidade de gênero.

 

Em 2018, estará na pauta da Organização Mundial da Saúde (OMS) a despatologização da transexualidade por ocasião da revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID). Está em curso o debate sobre o deslocamento da transexualidade do capítulo dos transtornos mentais para o das condições relacionadas à saúde sexual. A Psicologia brasileira denota autonomia ao apresentar normativa para o exercício profissional antes da efetivação da revisão da CID, apoiando-se na produção de conhecimento nacional sobre o tema e nos consensos democraticamente estabelecidos pela categoria em seus próprios fóruns de deliberação, tais como o Congresso Nacional da Psicologia (CNP) e assembleias do sistema conselhos de Psicologia. As dissertações de mestrado e teses de doutorado em Psicologia sobre o tema da travestilidade e transexualidade vêm adotando em uníssono o reconhecimento dos efeitos danosos da transfobia, incluindo aí a patologização como elemento estruturante dos processos de discriminação baseados no preconceito quanto à anormalidade das vidas travestis e transexuais.

 

Surpreende que poucos dias após a publicação da Resolução CFP 01/2018 o Ministério Público Federal de Goiás tenha instaurado procedimento preparatório para apurar ações ou omissões ilícitas do CFP no que se refere ao impedimento na atuação profissional de psicólogos diante da normativa em questão. Ecoa-se assim a polêmica em torno da Resolução CFP 01/1999, que veda a patologização e tratamento de reversão da orientação sexual, que também girou em torno da alegação de que a autonomia profissional e mesmo científica estaria sendo cerceada pela norma do conselho de classe. É evidente que a própria autonomia e autodeterminação da Psicologia está sendo colocada em questão juridicamente, embora seja necessário enfatizar que a partir de argumentos alheios à produção científica em Psicologia e aos ritos instituídos pela categoria de classe profissional para a tomada de decisão sobre a profissão.

 

A gravidade de tais medidas jurídicas que visam coibir a atuação do Conselho Federal de Psicologia na regulação da profissão é a da destituição da autonomia e autodeterminação da própria Psicologia. A acusação prévia de que haveria abuso de autoridade no cerceamento da atividade profissional ao vedar tratamentos de reversão da orientação sexual, e no caso mais recente da Resolução CFP 01/2018, sobre a identidade de gênero, desconsidera toda a produção acadêmica da Psicologia brasileira sobre homossexualidades, travestilidades, transexualidades e recusa da patologização e medicalização das vidas. Desconsidera, ainda, que antes da publicação da referida normativa, deliberações foram acordadas nos CNPs, campanhas pela despatologização das identidades trans estiveram em curso nos sítios e atividades presenciais realizadas pelos conselhos regionais e federal de Psicologia, que uma nota técnica sobre concepções não patologizadoras já estava disponível desde 2013 para orientar a atuação profissional diante de pessoas transexuais e travestis. Desconsidera, portanto o processo democrático de construção de uma normativa para o exercício profissional, alegando arbitrariedade e cerceamento de posições divergentes. Evidentemente, profissionais de Psicologia podem ter opiniões divergentes sobre o tema, embora a produção acadêmica brasileira seja uníssona na defesa da despatologização e também apesar de que tais posições contrárias, caso tenham se manifestado a tempo e respeitando o processo deliberativo democrático da categoria, não foram acatadas pelos plenários dos pre-congressos, congressos regionais e congressos nacionais da Psicologia.

 

Por fim, muitas e muitos profissionais de Psicologia que adotam concepções patologizadoras sobre travestilidade e transexualidade o fazem a partir do apoio na retórica da Medicina Psiquiátrica e de produção acadêmica datada e internacional. Também por isso é necessária uma resolução que oriente o exercício profissional a partir dos consensos de conhecimentos produzidos pela própria Psicologia no Brasil contemporâneo. É preciso pois reivindicar legitimidade para a produção científica da Psicologia brasileira. Estaríamos sendo acusadas e acusados de oportunismo acadêmico anticientífico? Trata-se, portanto, de um ataque também à autonomia das universidades brasileiras, que têm produzido conhecimento em Psicologia consonante à normativa que por ora celebramos e defendemos.

 

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