OPINIÃO

Marcos de Souza Mendes foi professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília por trinta anos. Graduado em Rádio, TV e Cinema e mestre em comunicação pela UnB, com pós-graduação iniciada na Universidade de Paris I –  Panthéon Sorbonne / Paris X – Nanterre e doutor em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É documentarista cinematográfico e atua nas áreas de realização, roteiro e pesquisa sobre preservação e memória.

 

Marcos de Souza Mendes

 

A interpretação da vida brasileira, de nossa cultura, de nossa sociedade, e a recuperação dos processos de transformação acontecidos e que acontecem na História – esta, esquecida, omitida, apagada, ou estiolada e manipulada pelos meios de comunicação – constituem o universo do Documentário Brasileiro. Desde o início do século XX, com o objetivo positivista de estudo das imensas regiões desconhecidas do interior do país, os cinegrafistas pioneiros dirigiram suas câmeras para o conhecimento do Brasil, seja para a documentação das próprias expedições de reconhecimento geográfico e de estudo das riquezas minerais, florestais e fluviais – a mais importante delas, a da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, conhecida como Comissão Rondon  –; seja para o registro dos povos indígenas contactados.

 

Principal indigenista da jovem República que visava a incorporação dos territórios e das populações indígenas, o militar Cândido Mariano da Silva Rondon criou, em 1910, o Serviço Nacional de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPI), cuja legislação de 1911 preconizava o respeito às tribos indígenas como povos que tinham o direito de ser eles próprios, de professar suas crenças, de viver segundo o único modo que sabiam fazê-lo: aquele que aprenderam de seus antepassados. No intuito de registrar os vários aspectos da cultura material e imaterial indígena, o SPI criou a Seção de Cinematografphia e Photografia sob a responsabilidade do então tenente Major Luiz Thomaz Reis (1879-1940), natural de Alagoinhas, Bahia.

 

O Major Reis, como ficou conhecido, foi o pioneiro do Documentário Etnográfico no Brasil e no mundo – o cinema das sociedades em seu fazer cultural, na construção de suas identidades espirituais e morais. De seu ethos. Rituais e Festas Bororo, de 1916, filme sobre as várias danças e momentos que compõem o famoso cerimonial fúnebre dos índios Bororo do Rio São Lourenço, de Mato Grosso (os Orarimogodogue, como se chamam, “peixe pintado do rio Araguaia”, o Oraribo Kurireu), foi o seu trabalho referencial, o mais próximo do idealismo de Rondon.

 

Outro grande pioneiro da documentação do interior e da imensa natureza brasileira foi o português Silvino Santos (1886-1970), radicado em Manaus a partir de 1910. Durante anos filmou nas florestas, nos rios amazônicos, fundou a Amazônia Cine Film, e realizou duas grandes obras documentárias: No País das Amazonas, de 1921, longa-metragem revelador da vida amazônica e do trabalho dos seringueiros e caboclos da selva; e No Rastro do Eldorado, outro longa-metragem, “com as primeiras tomadas aéreas na Amazônia”, segundo a pesquisadora Selda Vale da Costa.

 

No início dos anos 40, ainda no SPI, o idealismo de Rondon ressurgiria com a criação da Seção de Estudos, cujo objetivo maior era a pesquisa das origens, línguas, ritos, tradições, hábitos e tendências do índio brasileiro em um SPI, desta vez, voltado para defender o índio do extermínio, resguardar-lhe da opressão e da espoliação, e proteger suas terras da invasão perniciosa e assassina dos brancos. Após a morte de Thomaz Reis, o nome mais importante da documentação etnográfica brasileira no SPI foi o de Harald Schultz (1909-1966), brasileiro de raiz alemã, fotógrafo do antigo DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo Vargas, etnólogo autodidata, discípulo de Rondon e do célebre etnólogo Curt Nimuendaju. Segundo Herbert Baldus, ex-professor do antropólogo Darcy Ribeiro, Schultz naquela época já era “[...] o que mais tarde devia levar até a perfeição: o estudioso da vida indígena [...] o artista tornando visíveis em foto e filme as sutilezas das culturas alheias; e sempre e a cada hora o amigo incondicional dos índios, sofrendo por eles, com eles, e encontrando sua felicidade entre eles.” Virtudes inatas, certamente herdadas de Nimuendaju no que concernia a causa indígena, constatadas pela grande antropóloga Berta Ribeiro na publicação “O Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendaju”: “[..] o engajamento pela sobrevivência física e a defesa dos portadores de tradições culturais milenares ameaçadas”.

 

Seu filme mais conhecido no SPI foi Os Umutina, de 1945, realizado no Posto Fraternidade Indígena, Alto-Paraguai, então assolado por epidemia de coqueluche que atingia as crianças, e pela bronquite, verminose e subnutrição que atingiam os adultos sobreviventes da seca e das queimadas devastadoras. Este filme apresentava a construção detalhada de uma casa de folhas de palmeira; a confecção de uma flecha; a pesca com arco e flecha; e tristes imagens de uma menina morta. A partir de 1947, em seu novo trabalho na Seção de Etnologia do Museu Paulista, Schultz dedicou-se, à documentação de vários aspectos da cultura material dos índios Carajá, Suiá, Txukahamãe, Tucuna e Craô, como os da confecção de máscaras, botoques, cocares e cestos – filmes, estes, realizados durante quase duas décadas. No SPI, permanecera seu discípulo: Heinz Forthamnn, fotógrafo profissional, integrante das famosas expedições às nascentes do Xingu, de 1944 e 45.

 

Contemporâneo de Darcy Ribeiro na Seção de Estudos, Heinz Forthmann (1915-1978), nascido em Hannover, brasileiro por opção – professor da Universidade de Brasília de 1965 a 1978 – foi um dos grandes mestres da fotografia e do cinema etnográfico brasileiro. No SPI, junto com Darcy Ribeiro, realizou dois documentários considerados clássicos dos anos 50: Os Índios Urubus – um dia na vida de uma tribo da Floresta Tropical (1949/1950), e Funeral Bororo, de 1953. Após grande documentação xinguana, entre os anos de 1955 e 1957, quando realizou os filmes Txukahamãe, Jawari e Xingu, com a participação do sertanista Orlando Villas Boas, Forthmann continuou o fio de Rondon e Schultz. Nos anos 60 e 70, fotografou e dirigiu os documentários Kuarup, belo filme humanista sobre o ritual fúnebre dos Kamayurá, com orientação etnográfica de Roberto Cardoso de Oliveira; Jornada Kamayurá, que também contou com a participação de outro professor de Antropologia da UnB, Roque de Barros Laraia, e Rito Krahô, obra póstuma, filmado em Tocantins com a colaboração do antropólogo Julio Cezar Melatti.

 

A história do Documentário Brasileiro, além da etnografia, abre-se em muitos caminhos, quase todos fiéis à sociedade brasileira em suas lutas e desafios contra o analfabetismo, a ignorância, a fome, a violência latifundiária, a injustiça no campo e nas cidades doentes, a desmemória cultural e artística, o olvido da história política, trabalhista e familiar. Foram muitos homens – grandes homens – que dedicaram suas vidas a este Cinema e que permaneceram fiéis à sua arte e à sua poesia, como:

 

Humberto Mauro, diretor técnico e principal documentarista do Instituto Nacional do Cinema Educativo –INCE – criado por Edgar Roquette – Pinto em 1936, autor de dezenas de filmes de curta-metragem em 35 mm nas áreas de ciência, educação, saúde, vida rural, cidades históricas, artes e cultura popular - sendo os mais conhecidos os da série musical Brasilianas, como Azulão e Pinhal, de 1948, Aboio e Cantiga, de 1954, Cantos de Trabalho, de 1955 e Engenhos e Usinas, de 1955;

 

Leon Hirszman, Paulo Cezar Saraceni, Mário Carneiro, Joaquim Pedro de Andrade, Linduarte Noronha, diretores de curtas fundadores do Cinema Novo, reveladores da mulher e do homem brasileiro, trabalhadores do sertão, do campo e do mar, de grandes artistas, poetas e compositores populares – como Maioria Absoluta e Nelson Cavaquinho, de Leon; Arraial do Cabo, de Saraceni e Mário Carneiro; O Poeta do Castelo (Manuel Bandeira) e Garrincha, Alegria do Povo, de Joaquim; e Aruanda, de Linduarte, inspirador da luz nordestina de Vidas Secas;

 

Thomaz Farkas, grande fotógrafo e documentarista, nascido na Hungria e criado em São Paulo desde 1930, produtor da série Brasil Verdade, um conjunto de médias – metragens sobre a história nordestina e o homem brasileiro em suas condições de vida, trabalho e expressões culturais, constituído pelos filmes Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares; Viramundo, de Geraldo Sarno; Nossa Escola de Samba , de Manuel Horácio Gimenez, e Subterrâneos do Futebol, de Maurice Capovilla. Esta experiência se estendeu até o início dos anos 70, a uma extensa documentação etnográfica nordestina com ênfase na cultura do Sertão e na arte popular – a Caravana Farkas –, onde se destacaram os curtas-metragens de Sérgio Muniz (Rastejador, Beste), de Geraldo Sarno (A Cantoria, Vitalino Lampião), de Guido Araújo (A Morte das Velas do Recôncavo, Feira da Banana), de Paulo Gil Soares (O Homem de couro, A Mão do Homem, Jaramataia), e de Eduardo Escorel (Visão de Juazeiro);

 

Vladimir Carvalho, paraibano de Itabaiana, Professor Emérito da Universidade de Brasília, mestre maior do documentário sociológico, cultural e histórico do Nordeste e do Centro-Oeste brasileiros, responsável por grandes obras poéticas e humanas como os curtas – metragens Romeiros da Guia (1962), com João Ramiro Mello, A Bolandeira (1968), Vestibular 70, com Fernando Duarte, Vila Boa de Goyaz (1974), A Pedra da Riqueza (1975), Brasília, segundo Feldman (1979), e os longas-metragens O País de São Saruê (1971), O Homem de Areia (1982), Conterrâneos Velhos de Guerra (1990), O Engenho de Zé Lins (2008), e Cícero Dias, o compadre de Picasso (20016);

 

Silvio Tendler, ex-presidente da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro, discípulo cinematográfico de Cosme Alves Netto, com estudos na França sobre a obra de Joris Ivens, documentarista da história brasileira, lutador incansável contra o neoliberalismo e o imperialismo. Profundo conhecedor de acervos cinematográficos e do trato com as imagens do passado e com a memória oral, Silvio realizou um dos mais importantes filmes sobre a história moderna brasileira e sobre o golpe militar: Jango, de 1984, trabalho que aliou rigor da pesquisa com material de arquivo, competência da montagem cinematográfica e paixão pelo tema e personagem – o seu coração de estudante. Dentro do caminho poético, engajado e histórico, Silvio realizou vários outros grandes trabalhos, entre os quais: Glauber, o filme – labirinto do Brasil; Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá; Utopia e Barbárie; Marighella, e Giap;

 

Eduardo Coutinho (1933-2014), o documentarista do homem, da memória popular, do encontro e do diálogo com o próximo, autor do grande monumento da cinematografia brasileira: Cabra Marcado para Morrer, de 1984. Iniciado em 1964, interrompido pelo golpe militar, continuado vinte anos depois com o reencontro dos camponeses remanescentes do filme original, a obra de Coutinho se estrutura como busca intransigente da memória e da identidade humana. As fotografias do passado, o que restou do filme do passado, interagem com a vida do presente camponês, não de forma nostálgica, mas como dialética do encontro para nova vida. No caso, a de Dona Elisabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, líder da Liga de Sapé da Paraíba, assassinado em 1962 a mando de latifundiário da região, e que teve sua família estilhaçada pelo golpe, separada dos onze filhos. Santo Forte; Edifício Master; O Fim e o Princípio; Jogo de Cena, foram outros de seus filmes, tanto revolucionários na dramaturgia documentária, quanto reveladores do cidadão comum e de suas vidas verdadeiras e cotidianas.

 

Grande árvore que desabrocha em flores novas, o Documentário Brasileiro segue seus novos caminhos pelo conhecimento da vida brasileira, pelo respeito com o outro, pela expressão lírica, ensaística e subjetiva. Roteirizados pelo tempo, pelo imprevisto, pela dinâmica da produção, pelo amor e pela ética, novos grandes filmes nasceram e novos grandes cineastas se revelaram – e se revelarão. Filmes como Estamira, de Marcos Prado; Santiago e Nelson Freire, de João Moreira Salles; À Margem do Lixo, de Evaldo Mocarzel; Elena, de Petra Costa e Martírio, de Vincent Carelli, certamente contribuirão para nos fazer mais cidadãos, para nos fazer sentir e pensar , assim como farão a sociedade compreender e valorizar a arte do Documentário, este outro cinema tão imprescindível para a formação moral de um país.

 

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