OPINIÃO

Remi Castioni é professor-pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação na modalidade acadêmica e profissional da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade de Caxias do Sul, doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. É membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Educação Comparada (SBEC). Atua nos temas: educação, qualificação profissional, políticas de educação, sistema nacional de emprego, desenvolvimento regional, federalismo, certificação profissional e ensino médio.

Remi Castioni

 

A Medida Provisória n. 746/2016, que alterou a organização curricular do ensino médio, foi objeto de intenso debate no meio educacional, desde o seu envio ao Congresso Nacional até sua aprovação na noite de 8 de fevereiro, deste ano, no Senado Federal e sanção presidencial no dia 16 de fevereiro. Essa proposta recebeu 567 emendas. Considerando o tempo de tramitação, é possível inferir que foi a atividade legislativa com maior número de emendas. Apesar da evidente participação dos legisladores durante a tramitação dessa medida, é inegável que a forma escolhida pelo governo federal para propor mudanças nesse nível de ensino é sem sombra de dúvidas equivocada. Tendo em vista que já tramitava um Projeto de Lei (PL) nº 6.840/2013, objeto de estudos da Comissão Especial da Câmara. Portanto, já havia elementos suficientes para propor mudanças – a própria MP incorporou cerca de 75% dos elementos propostos no PL – para essa oferta de ensino, almejada há anos, por vários segmentos.


Após aprovação no Senado Federal, a questão fundamental que se coloca é: o que se espera desse novo ensino médio? Esta parece ser a principal questão, que não é posta pela nova normativa. Infelizmente a educação é palco frequente de disputa territorial por agentes do legislativo. E neste caso, o Congresso Nacional deveria ser proibido de legislar sobre matéria educacional, a não ser naquilo que lhe outorga a Constituição Federal. Portanto, reforma curricular não é matéria de legisladores – esta competência deve ser atribuída às instituições de pesquisa (universidades, institutos, etc.), da área educacional, e que por tanto, produzem conhecimento e mantém relação direta com o alvo dessa Medida – alunado e escola.  


E válido ressaltar que o problema do ensino médio, na forma como se estrutura hoje, é objeto de intenso debate desde a década de 1970. Em maio de 1970, o MEC constituiu um Grupo de Trabalho, que se reuniu na Faculdade de Educação/UnB e propôs uma reforma para esse ensino. Naquela época, o Prof. Valnir Chagas, da Universidade de Brasília, assumiu a relatoria desse grupo – posteriormente ele foi também o responsável pela regulamentação dessa reforma, no então Conselho Federal de Educação. Da proposta do GT, surgiu a Lei n. 5.692/1971, na época muito criticada, inclusive pelo fato de propor uma “trava” no acesso ao ensino superior e possibilitar, no âmbito do 2º grau (ensino médio), a profissionalização compulsória – tentativa que não deu certo.

 

A questão central, que se coloca nos dias atuais – mas também na década de 1970 – é a grande dificuldade de se alcançar melhores resultados na educação. Tendo em vista que o campo educacional é refém da implementação de normas e procedimentos, em defesa da qualidade do ensino, por força de uma Lei. A burocracia educacional age no sentido de “reforma dos sonhos”, mas o que os implementadores entregam de fato é “gato por lebre”. A Lei falha por não atender o principal – a inovação.

 

O Brasil tem enorme dificuldade de acolher experiências exitosas de outros países. Ou seja, o modelo de ensino médio que temos aqui é único no Mundo: 13 componentes curriculares, que podem chegar a 17, dependendo da escola, altamente conteudista e que se destina a uma única finalidade: ingresso no ensino superior.


Anísio Teixeira, o criador do Sistema Educacional de Brasília, encarregado por Juscelino Kubitschek, identificou nas suas reflexões alguns dos problemas nas escolas e as caracterizou como suscetíveis a “mineralização”. Explicação essa que parece ser apropriada para o que se assiste em períodos de mudanças no trabalho pedagógico. Segundo ele, as escolas passaram a ser um fragmento movido e sacudido por ordens do centro através da monstruosa centralização, na “mineralização”, que tem imposto a estas um padrão, uma organização, um controle sobre as pessoas e os processos, desintegrando as identidades e se transformando em blocos de pedras (REP, Vol. 86, n. 212, out. 2005, p. 23-37).


A reflexão do nosso ex-reitor Anísio Teixeira, apeado da Reitoria, em abril de 1964, remete a reflexão sobre um tema inerente a dinâmica social nas escolas, que é a organização do trabalho pedagógico. Existem outras formas de organizar o “tempo” na escola, não necessariamente do modo como sugerido pelas intencionalidades políticas expressas no documento de uma Lei. Nesse particular, se a busca é a mudança, a comunidade escolar deve ser ouvida – é preciso deixar muito claro o que se pretende e qual o compromisso de cada um no atendimento dessa mudança.


Há uma tendência natural da comunidade escolar em rejeitar as propostas vindas do centro do sistema. A adesão a essas mudanças não é tarefa fácil, pois o campo da educação, preso muitas vezes a normas e antecedentes históricos de um fazer pedagógico, se engessa por não priorizar mudanças em benefício do alunado. Dessa forma, o mesmo movimento que rejeita as mudanças, pouco contribuem para fazer emergir de dentro, outros formatos para a organização do tempo escolar.


Uma pesquisa de 2010 realizada pela Fundação Carlos Chagas e Instituto Protaganistés, de São Paulo, denominada: Melhores Práticas em Escolas de Ensino Médio no Brasil, em quatro redes de ensino médio: Acre, Ceará, São Paulo e Paraná identificou pelo menos oito características marcantes nessas escolas, que aparecem com maior ou menor intensidade em cada uma dessas escolas. São elas: i) aprendizagem como foco central da escola; ii) expectativas elevadas sobre o desempenho dos alunos; iii) elevado censo de responsabilidade profissional dos docentes em relação ao sucesso dos alunos; iv) trabalho em equipe e lideranças reconhecidas; v) preservação e otimização do tempo escolar; vi) normas de convivência claras, aceitas e incorporadas à dinâmica da escola; vii) clima harmonioso: a escola como um lugar agradável para ensinar e aprender; viii) autonomia e criatividade por parte da equipe escolar.


Como se pode ver, a organização do projeto pedagógico da escola se insere como elemento central nesse processo; e quando se considera onde se quer chegar – o desafio perpassa pela ideia de convencimento da comunidade quanto a proposta de mudança a seguir. Para tanto, o diagnóstico, o diálogo franco e aberto entre os partícipes do projeto é o melhor caminho.


Depreende-se desse percurso que a intenção da mudança seja efetivamente clara – qual o caminho? por que temos de seguir por ele? o que se pretende com isso? com que meios vamos alcançar? quais as condições para tal? – essas são premissas mínimas para angariar o apoio da comunidade escolar. Se essas bases não estiverem suficientemente claras e não forem acordadas entre os executores da mudança (comunidade escolar) – e se eles não se sentirem autores desse processo – é um sinal evidente de que essa mudança não ocorrerá.

 

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