SAÚDE

Zika, documentário dirigido pela professora Débora Diniz, reúne histórias de gestantes e mães afetadas pela disseminação do vírus na região Nordeste

 

Foto: Reprodução

 

“A primeira reação é o silêncio. As pessoas não sabem se elas aplaudem, como reagem: se é uma peça de estética ou uma peça política, a qual relata um sofrimento que não é ficcional, é documental. Então, como aplaudir a dor do outro?”. Essa foi a descrição da professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Débora Diniz, sobre a primeira exibição internacional do documentário Zika, ocorrida em maio, em Copenhague, na Dinamarca.

 

Na ocasião, a também antropóloga e diretora do filme trazia um alerta à comunidade internacional sobre a situação da epidemia do Zika no Brasil durante uma conferência mundial sobre saúde da mulher. Ver pessoas do mundo todo paralisarem, diante de 30 minutos de intensa exposição dos sofrimentos de mulheres afetadas pelo problema, foi sinal de que o filme surtiu efeito. “Esses segundos de não comportamento padrão diante do fim do filme me mostram que ele cumpriu o papel que esperávamos de provocar no outro a imaginação sobre a realidade do que é ser uma mulher em idade reprodutiva em plena epidemia do Zika Vírus no Brasil”, comentou Diniz.

 

Gravado entre fevereiro e abril deste ano, o documentário é fruto do contato da professora e de uma equipe com mulheres na Paraíba, diagnosticadas com a infecção no momento da gestação e que tiveram seus bebês afetados por síndromes congênitas causadas pelo vírus, como a microcefalia. Em sua maioria, são mulheres que moram em áreas periféricas nas cidades de Campina Grande e Juazeirinho, cujas trajetórias são marcadas pela extrema desigualdade social. A Paraíba, junto com Rio Grande do Norte e Alagoas, concentra 72% dos casos de crianças nascidas com microcefalia no Brasil.

 

 

HISTÓRIAS – “O espanto com o qual nós chegamos ali, no início de fevereiro, era de que nós sabíamos muito pouco, nós precisávamos ver o rosto, a vida dessas mulheres para nos qualificarmos para o debate político”, comenta Diniz. Foi após receber um apelo da obstetra e defensora do parto humanizado Melania Amorim, sobre 40 casos de crianças nascidas com microcefalia na região, que se aproximou da realidade de inúmeras vítimas da epidemia. Entre elas, Amanda Loizy, Marina Leite, Alessandra Amorim, Ana Angélica Lima e Géssica Santos, todas marcadas por algo em comum: a angústia e incerteza após o diagnóstico.

 

Por meio do olhar dessas cinco mulheres, o documentário retrata a luta pela qualidade de vida de seus filhos, pelo direito de acesso aos serviços de saúde e ao aborto, além da força para resistirem à tristeza de perderem seus bebês em função de uma infecção sobre a qual as informações ainda são precárias. São histórias como a de Alessandra Amorim, mãe de Samuel, que contraiu o Zika aos três meses de gravidez, mas só aos setes descobriu que o filho tinha microcefalia: “Meu medo maior não era se ele viesse especial, era se ele morresse”.

 

A professora da UnB também conheceu Géssica dos Santos, que teve que lidar com uma dor ainda maior: o feto nasceu sem parte do cerebelo e morreu no dia seguinte na UTI devido às complicações da síndrome congênita. Géssica, que estava ciente da situação desde a 20a semana de gestação, poderia ter abortado, mas não foi essa sua opção. A tristeza em perder seu pequeno não a desmotivou na luta pela vida. Foi graças ao material doado do feto para análise que se pôde estudar melhor o vínculo entre a Zika e a microcefalia. “As pessoas me perguntam quem é Géssica, de onde vem toda sua sabedoria? Vem exatamente do corpo que sangra a saudade do filho e que ainda guarda seu enxoval. Vem dali a solidariedade à humanidade”, relata Diniz.


As dificuldades dos profissionais de saúde em lidar com o sofrimento dessas mulheres também ganha espaço na fala da médica Adriana Melo. “De tanto ver a dor de vocês, a dor também é minha. O que a gente pode fazer é segurar nas mãos, abraçar e procurar respostas para que outras mães não passem por isso", desabafa.

 

O filme, após ser realizado, recebeu apoio da organização não governamental Women’s Health Coalition (IWCH).

 

Em entrevista à Secretaria de Comunicação da UnB, a antropóloga falou sobre o documentário e sobre a situação da epidemia no Brasil.

 

Secom/UnB: Quando começou a se envolver na discussão sobre o Zika Vírus?

 

Professora Débora Diniz ressalta que o documentário aborda questões como planejamento familiar, aborto e exercício da maternidade. Foto: Anis - Instituto de Bioética

 

Débora Diniz: De dezembro de 2015 a janeiro de 2016, fiz parte do comitê de especialistas da Organização Pan Americana de Saúde (OPAS) para traçar uma política de enfrentamento à microcefalia nas Américas. Aquele foi um momento muito importante, porque me permitiu entender como a discussão tinha questões centrais de saúde pública, da mulher e das crianças, e como o debate brasileiro é amador e desrespeitoso às mulheres. Se nós pularmos para hoje, há três semanas a Organização Mundial de Saúde lançou uma resolução alegando que não há riscos de as pessoas virem para o Brasil [em referência às Olimpíadas], mas ao mesmo tempo recomenda que as mulheres brasileiras devem adiar a gravidez. Não entendo como essas duas coisas podem vir da mesma organização. Não se tem que falar em atrasar a gravidez, mas falar de direitos reprodutivos, de uma justiça reprodutiva, com o acesso ao planejamento familiar, à informação, a condições de as mulheres tomarem decisões sobre sua vida reprodutiva e aí, sim, se falar sobre informação e riscos de uma gravidez durante a epidemia.

 

Secom/UnB: Como surgiu a ideia de fazer o documentário sobre o assunto?

 

Débora Diniz: A ideia veio justamente daí: de que nós precisávamos sair da abstração dos direitos violados e primeiramente contar histórias, mostrar rostos, passado, sofrimento, nos juntarmos a outras mulheres no centro da epidemia.

 

Secom/UnB: O que observou com relação à assistência às gestantes que tiveram Zika e participaram do filme?

 

Débora Diniz: O sofrimento dessas mulheres talvez esteja mais associado ao desamparo que elas vivem em torno de um Estado que negligencia suas necessidades durante a epidemia. Nós preferimos olhar para a crise política do que para a história das mulheres no centro da epidemia. Essas mulheres estão desamparadas para garantia dos direitos sociais de seus filhos e delas próprias, como proteção social, acesso à saúde e ao transporte.

 

Secom/UnB: Quanto aos médicos, qual a percepção deles sobre o crescente número de casos e a própria falta de informação sobre o vírus e a microcefalia?

 

Débora Diniz: Os médicos vivem essa angústia de ter que informar durante a epidemia. Mas o que é informar? Qual é o dever de informar? Como proteger e como cuidar? Especialmente as médicas, que é o grupo com que venho trabalhando, elas vivem nesse duplo compromisso, que eu diria que é ético e afetivo, de que é possível informar, é preciso cuidar, é preciso reconhecer que, mesmo sobre intenso sofrimento colocado pela epidemia, as mulheres, quaisquer que sejam elas, sabem o que é melhor para a vida delas. São médicas que lutam pela garantia de direitos dessas mulheres.

 

Secom/UnB: O filme dá destaque a mulheres que vivem em situação de vulnerabilidade social. Essa é a realidade da maioria das gestantes que contraíram o Zika e cujos bebês adquiriram a síndrome neurológica?

 

Débora Diniz: Sim. Não é porque a pobreza causa a síndrome neurológica, mas por aquilo que nós chamamos de determinantes sociais da saúde, que são pobreza, condições de vida urbana, de acesso à informação. Essas mulheres estão em maior situação de precariedade da vida e de dependência da legalidade do Estado para a garantia de seus direitos. Quando mostramos o rosto de uma mulher pobre, nordestina e, algumas vezes, pouco educadas, não só é rosto da maioria da população brasileira em situação de precarização na vida, mas onde está o epicentro da epidemia do Zika no país.

 

Secom/UnB: A senhora foi a única pesquisadora brasileira signatária da carta internacional que pede o adiamento dos Jogos Olímpicos do Rio em função de uma possível disseminação da epidemia para outros países. O que a motivou?

 

Débora Diniz: Temos aqui um paradoxo: as Olimpíadas são o momento em que o país diz ao mundo que todos são bem vindos para o turismo, para o encontro, para a paz. E o que tínhamos era uma recomendação da OMS dizendo que quem viesse para as Olimpíadas não saísse dos hotéis, usasse mangas compridas, que evitasse relações sexuais desconhecidas, e se a companheira do país de origem estivesse grávida, ficasse em abstinência durante seis meses, que evitasse visitas a locais empobrecidos. Ou seja, que não viesse ao Brasil. Se nós temos esse risco de saúde das populações, como eu não poderia dizer que não é o momento de nós convidarmos as pessoas do mundo para virem aqui? Estamos chamando meio milhão de pessoas para, durante poucas semanas, estarem em um dos estados que tem hoje o maior pico de epidemia.

Palavras-chave